Em termos de expressão, mylord, qual a diferença entre o alemão, o francês e o brasileiro?

É que o alemão pensa antes de falar ✦ o francês pensa enquanto fala ✦ e o brasileiro fala sem pensar. (Lord Jaeggy)

quinta-feira, 18 de junho de 2020

JOGANDO CONFETE: a coluna literária de JOTABÊ MENDONÇA

"Pense-me antes de fazer-te" poemas de Harildo Catunda, Editora Fumacê, 278 páginas, R$ 38,90






Assim que vi a capa, meu primeiro reflexo foi de lançar o exemplar pela janela do décimo-quarto andar onde sobrevivo. A alucinante concepção gráfica da capa, um orgasmo desvairado de cores carnavalescas exaltadas, lembrou-me as piores criações de arte psicodélica do início dos anos 70, e encheu-me de um asco legítimo, repentino e violento. Porém, antes do gesto fatal, detive-me ainda e, pela primeira vez, li sobre a escabrosa "obra-de-arte" desse Pollock tupiniquim — cujo nome evitarei citar aqui — o título em negativo: Pense-me antes de fazer-te. O intrigante título teve em mim o efeito de um tétano. Estancou-me a mente e o braço, abortando o meu súbito ímpeto de lançar o livro pela janela. Após longo hausto de ar, voltou a rondar-me Dona Curiosidade e, muito cuidadosamente, abri o livro. Na página de rosto, reconheci o autor: Harildo Catunda, um dos poetas mais criativos da nova geração. Confesso que, naquele instante, agradeci ao equivocado grafista por ter exarado o título em letras tão visíveis, e tão legíveis.

Harildo Catunda já impressionara bastante a crítica especializada quando do lançamento do seu Cavalos raramente nada dizem, de 1991, e muitas vozes apontavam já no então jovem poeta piauiense, o arauto maior de uma certa poesia nacional. As duas obras suas que se seguiram — A Lua riu do Mundo (1993), um jogo de sonoridades lúdicas com seu próprio nome, e Fui (1997), uma coletânea de neo-sonetos pós-modernos prefaciada por Caetano Veloso — confirmaram sobejamente o vaticínio dos críticos, consagrando Catunda no Panteão das maiores figura da poética pós-apolítica de língua portuguesa. 

Na recente obra, o autor mantém-se fiel à sua retórica permeada de absenteísmos, simbolismos e de, não raro, provocações. Prevalece, também, o lado prático de um amoral desejo de conforto que não hesita em afirmar que "...um ático de frente pro mar / uma sereia on the rocks / me diz, quem há de rejeitar?". 


É bem visível aquilo que a poesia de Catunda deve à imagem concreto-surrealista, mais do que ao surrealismo em geral. E o ilustra bem no poema Verão Abaixo de Mim: "Improviso-me entre bananas celestes/ línguas do Leste e bardanas/ lúbricos manjares de búlgaros e magiares/ mas no fundo mesmo todos cabras da peste." Um outro poema, baseado num processo de enumeração desconcertante: "Uma mosca nos dois lábios/ das três secretárias exiladas de quatro/ é motor imóvel a cinco marchas enfiadas/ minhas seis vontades de fornicar a sete varas." Veja-se como esta poesia, mesmo na enumeração, supera o descritivo (e, por conseguinte, também o confessional) para desviar-se, aliás, da asserção subjetiva de forma absolutamente coerente, polarizando uma única ocorrência do Eu. Toda a sua força está na instauração desse sentido, criando aberturas a horizontes jamais insuspeitados.

Na sonorosa ode Atriz Atroz Atrás Há Três, cabalmente inspirada no conhecido mote atribuído a Emílio de Menezes, a predileção de Harildo Catunda pela confrontação assimétrica das sonoridades urde-se de maneira invejável, através de uma tapeçaria de indagações implícitas, descentralizando-se à medida em que as vertentes dos imprevisíveis dissolvem-se na periferia das ambigüidades: "Nas volutas azuis do tabaco / esse vácuo de luz nas disputas / é cruz entre as putas e o macaco..." 

A força maior desta obra está no saber, no sabor e na sobra da descoberta que o autor tão bem consegue transmitir, entre vínculo e prosódia, aldeias poéticas e cidades prosaicas, pedras polidas e gente incivilizada. Numa escrita solta, fresca e, por vêzes, bem-humorada, o apolítico Harildo Catunda revela-se-nos simultâneamente — notem bem! — um provocador, um esteta, e um descobridor que reflete ao sabor da pena, arrebanhando idéias mais do que personagens e, com isso, prendendo o leitor ao fio da meada e do Tempo.  

Talvez por isso, este crítico aqui se mostre tão entusiasmado e, quiçá arrebatado, com o remate do livro, concluindo que Pense-me antes de fazer-te é, afinal, a utopia do futuro das letras atlânticas. Depois de ler este Juízo Afinal, diga-me quem não terá vontade de mergulhar nesta indescritível viagem: É impossível de dar gosto a todo um / a frieza da neve que para uns dosa a noiva / para outros é a inimiga que os lança a lodos / é o golpe fatal de Diana e sua goiva, / é o meu saltar para lugar nenhum / e no ar inda gritar: que se fodam todos!


Ler Harildo Catunda é tomar uma cerveja no bistrô de uma Manhattan em pleno deserto. Por isso, não resisto a pedir a Miguelzinho Vianna, o meu caro editor da Fumacê: por favor, Miguel, faça uma nova edição deste livro mas, pelo amor de Deus, mude o grafista, mude a capa!



quarta-feira, 10 de junho de 2020

RONNIE LEU POR VOCÊ




as melhores novidades literárias de Ronaldo BUSCHETTA


Reiki Jr. tem 19 anos e desde criança é apaixonado por Clara Joyce. Na festa de divórcio de sua mãe, Reiki Jr. finalmente conseguiu beijar Clara Joyce, e achou que aquele era o dia mais feliz de toda sua vida. Mas toda essa felicidade desaparece como que por encanto quando Reiki Jr. descobre que a foto de Clara Joyce, que estava na parede de seu quarto, desapareceu! – e, muito pior ainda: descobre que a foto estava sendo publicada no Orkut, no Facebook e espalhada pelos mais diversos blogs, comportando mensagens de amor que não foram escritas por ele! Reiki Jr. cai de joelhos e começa a chorar, soluçando convulsivamente e gritando: – Quem poderia ter feito uma coisa dessas comigo?

O surpreendente livro Eu te Amo, Clara Joyce! de Ariana Assumpção Moreyra me surpreendeu muito positivamente, mas demais mesmo. É uma leitura leve, sem pretenciosos colesteróis semânticos, dramaticamente divertida, e com um leque de excelentes personagens, que amadurecem durante a narrativa. As situações narradas, como a própria autora me revelou, são calcadas em temas bem reais, temas saídos do cotidiano dos adolescentes e que ela, como psicóloga especializada em jovens, sente-se totalmente à vontade para narrar. É muito difícil encontrarmos um livro que trate da masturbação, por exemplo, sem cair no erotismo ou com meias palavras. Poderia citar aqui alguns trechos de Eu te Amo, Clara Joyce! que narram situações ligadas a este tema tão delicado, porém, não apenas o pudor, como também as regras de decência que me foram previamente preescritas pelo autor deste blog, me impedem de fazê-lo. Mas, posso assegurar aos leitores mais ou menos incautos, que os pormenores e diálogos de tais cenas são narrados em minúcias quase que fotográficas. "Boa parte dessas situações são oriundas da minha própria experiência com jovens de ambos os sexos" explica a autora, com essa serenidade natural dos profundos conhecedores de um assunto. "Além do mais, é uma matéria que sempre me atraiu e que me atrai, eu me sinto totalmente à vontade para falar disso."

A trama desse livro é por demais original e se apóia em uma história de amor e ciúmes entre jovens. As primeiras descobertas do corpo, dos sentimentos, os modismos, as gírias, as alegrias e amarguras do universo da adolescência fazem de Eu te Amo, Clara Joyce! um romance de amor moderno, porém com dimensões de obra da literatura universal. Por exemplo, a cena em que Reiki Jr. após uma busca desenfreada de sua amada através de toda a cidade, em plena madrugada, finalmente a encontra saindo de uma boate acompanhada de seu mais recente namorado é extremamente tocante. Ali mesmo, diante da boate e de todos, sob uma chuva torrencial, o jovem se põe de joelhos, soluçando convulsivamente e gritando o seu imenso amor por ela. Clara Joyce, abraçada ao roqueiro Krishna Starr, começa a rir cada vez mais alto e é levada, aos prantos, pelo seu namorado até o carro dele. Uma cena de alto teor dramático e que me lembrou muito a intensidade da cena do balcão de "Romeu e Julieta" do imortal William Shakespeare.

Eu, pessoalmente, adoro histórias assim, em que a autora pega um contexto que pode até ser meio previsível, mas que acaba servindo de pano de fundo para o desenvolvimento de um enrêdo novo, onde paixão, violência e sexo são os ingredientes principais. "Eu mesma não sou uma adepta da violência, e menos ainda da sexual, óbvio. Mas tem horas que o crescimento do personagem pede isso, é impossível de não se deixar levar, eu entro na pele de cada personagem, vivencio o drama dele, sofro, choro, rio, eu me entrego totalmente, sem a menor retenção.", esclarece Ariana Assumpção Moreyra. E é exatamente isso que acontece nesse livro: a foto de Clara Joyce é muito importante para Reiki Jr., mas à medida em que as atitudes tomadas por ela, as traições, o seu lado leviano, e mesmo uma forte tendência à promiscuidade tornam-se demais, isso tudo poderá levar o leitor a pensar se todo esse amor é realmente tão importante assim.

Por essas e outras, posso assegurar que o admirável livro de Ariana Assumpção Moreyra já se enquadra no perfil de um clássico moderno, um livro de leitura obrigatória, um livro 5 estrelas, e eu o recomendo a todo aquele que gosta de uma leitura leve, picante e inteligente, muito bem escrita, e com personagens que não vemos no dia-a-dia. Um livro sublime. E como eu tive a honra de ter sido convidado pela autora, e de ter estado presente ao coquetel de lançamento de Eu te Amo, Clara Joyce! no esplendoroso grill room do Arkshore Hotel,  brindarei vocês com uma última indiscrição que me foi soprada à orelha pela própria: "Você é um gato!" 

Como podem ver, tive de que ficar orgulhoso, mas na verdade fiquei ruborizado até a raiz dos cabelos. 


Eu te Amo, Clara Joyce! de Ariana Assumpção Moreyra, W&W Associados, 224 páginas, R$ 90,00. nudevista.com.br


terça-feira, 2 de junho de 2020

JOGANDO CONFETE: a coluna literária de JOTABÊ MENDONÇA

"Avenida, Avestruz, Avemaria: Ave!" poemas de Ratto Guedes, Edições Alfabeto em Pó, 211 páginas, R$ 35,00






Li o livro e não gostei; fui ver um filme. Assim, eu poderia resumir o meu primeiro contato com o segundo livro de poemas do poeta amarilano Ratto Guedes, Avenida, Avestruz, Avemaria: Ave! que acaba de ser lançado pela Alfabeto em Pó. No entanto, uma sala escura de projeções pode nos reservar surpresas dignas da imaginação de um sacerdote de província. E, de volta ao aconchego do meu gabinete de leituras – um eufemismo para designar a peça doméstica e sanitária mais conhecida de todos nós – exerci-me, mais uma vez, à inóspita tarefa de repisar os dolorosos cardos do caminho da crítica literária. E, colpo di scena, eis que os versos de Ratto Guedes, qual salamandras desinibidas, denunciaram meus temores, minhas reticências, meus ontológicos preconceitos, e, repuxando a infensa ambigüidade que se espreguiçava pelos meus olhos, lançaram então a minha visão a páramos nunca dantes navegados. Um livro-epifania, verdadeiramente.

Já com "Zanúbia, Zuruã, Zigônia" de 1971, Ratto Guedes reunia em sua obra poética de até então a matéria-prima literária que, com os anos e publicações esporádicas em coletâneas e jornais estudantis, confirmaria e condensaria as grandes linhas de sua singular retórica. Desconstruir um mundo em desconstrução a partir da idéia de poetizar o anacrônico, o caótico, o incoerente, onde o caos não ocupa mais a paisagem, porém torna-se parte do universo do leitor é mais que uma proposta, é desafio. O Ex-Quartejador é o poema onde melhor se evidencia esse desmembramento. Nele, a percepção do leitor, até então nuclear, se faz prismática, aleatória. E bem o declara a estrofe: "Do pó da voz da laringe seccionada / meu dedão do pé desfia os seus milímetros /  jaz, diante do altar, meu amor sem orelhas / a suada fera que me alimenta é você". O olhar já não vê mais o de fora, ele intui o que poderia ver de si mesmo. A força das imagens em Ratto Guedes se traduz outrossim na musicalidade incontida das palavras, na força destrutiva dos conceitos, na recorrência de suas linhas-mestras de eleição, a paixão e o dúbio da paixão. 

Um exemplo incontestável disso é a sensação de vácuo e de extravio que se reforça a cada leitura de Retrato da dor quando jovem: "A perna me dói e eu me calo / a perna me dói e eu me seco / a perna me dói e eu me abalo / a perna me dói e eu me esqueço /..." A repetição obstinada do agente da sensação física na camada cognitiva de cada leitura, estabelece um hiato entre a origem conceitual da dor e o auto-exercício da razão com teor literário. Uma ambivalência forçada pelo poeta e que se cristaliza na declaração final, quase uma súplica: "sê tu a anestesia, / vem, amor, e me abraça".   

No furtivo poema Muro o Mito que Mata, de franca inspiração japonesa, as sonoridades parecem se nutrir delas mesmas, da tecelagem plurissêmica de indagações, do descentramento do pathos que se arraiga ao passional através do eixo razão-emoção. Parte-se mesmo deste: "No lábio roxo da tua cona / coxo, um astrolábio que ressona /..." Muitos outros autores poderiam aqui se inspirar, e desenvolver um paradigma. Porque a poesia de Ratto Guedes emerge da própria exterioridade, do imediato que nos leva a confundir uma tendência compensatória em minimizar os conteúdos diretos de cada emoção, e, como tal, ela busca a espontaneidade no seu próprio antagonismo. E exemplifica no dístico imortal: "Medro às vascas do meu desejo / e beijo a pedra que me lasca".

Ainda não é tempo para que se saiba se a poesia de Ratto Guedes lhe é idiossincrática ou não. Todavia, em qualquer das possibilidades, estaremos assistindo ao crespúsculo de um certo imaginário que vigora até então nas letras brasileiras: aquele que, surgido da dopagem das rimas, engendra o arquétipo do alvo cujo centro tonal já se encontra previamente estabelecido. A poesia de Guedes está em tudo. E em lugar nenhum. 


domingo, 31 de maio de 2020

VEM COMIGO! a grande reportagem do mês, "signé" NEY HERBERT-SUZUKI


VEM COMIGO!    a grande reportagem signé  NEY HERBERT-SUZUKI



O GRANDIOSO NATURISMO NATURAL MADE IN BAHIA


Nos dois quilômetros de praia branca a perder de vista, proibido mesmo é o uso de roupas. « O negócio é liberar geral », a frase que mais se ouve, saída dos lábios grossos de uma gente morena e sestrosa, tranqüila, e espantosamente nua. O paraíso dos nudistas (ou naturistas pós-tropicalistas, como o querem alguns) fica a pouco mais de cinco quilômetros da Linha Verde do Tratado de Tordesilhas, na localidade de Massarandupió, no próspero município de Entre Rios, em um dos recantos mais exóticos e, curiosamente, o menos famoso do grande litoral norte baiano. Ali toda nudez é permitida, mas (pormenor importantíssimo) sem permissividade alguma, uma norma aliás explícita em corolário e que é ponto de honra que a distingue como única praia naturista da Bahia carente, e a segunda em todo o Nordeste que Deus dá.

Nas duas estações do ano, Massarandupió atrai uma pequena multidão de banhistas bem apanhados e iracundas ogivas luzidias, uma parafernália de balagandãs bastante diferentes, porém, que exibe um claro denominador comum: todos são desinibidos. Quer pelo seu exotismo tipo-exportação, quer pelo fato de ser justamente um local onde as pessoas podem ficar completamente à vontade, ou seja, mais peladas que frango no espeto, a zona realmente promete. Isolada por extensos contrafortes mouriscos e pelas albarrãs de elevadas dunas, separada da histórica vila Dentro pelo terrível rio Saiduípe, sem acesso algum para veículos motorizados, sem eletricidade, sem médicos residentes e nenhuma forma de comércio carnal por perto, a praia do nudismo natural é inacessível para o assalariado comum, ou para o modesto arrimo de família e mesmo até para o pequeno produtor rural de origem japonesa. E é isso que garante a sua privacidade junto ao setor bancário, onde somente quem se submete a uma espécie de Código Oral de Relações Anuais (CORA) pode freqüentar a praia, sem o menor problema de ali encontar sua mulher com o vizinho, ou uma antiga professora de ginásio, ou mesmo ainda colegas do escritório que jamais suspeitaria ver em um tal lugar. O que ali se sacramenta, entra apertado nos anais da História e não há mais como sair.

Toda decência será castigada 

O idealizador e presidente da Associação Baiana de Naturismo Natural (ASBANANA), o já lendário padre Miguelzinho Vianna, disse que o local foi criado no nascer do dia 20 de fevereiro de 1988, mediante decreto da Capitania de Entre Rios, parafraseada mais tarde pelo excelso Comendador Bartolo Mendes de Nunes Castro. “No início, éramos apenas 7 casais praticantes de uma forma arcaica de swing católico, mas hoje já estamos com mais de mil sócios, sem contar as pessoas que se roçam nas filas e se beliscam, e que ficam enfezadas de despeito, querendo entrar, mas eu não deixo.” disse, referindo-se irônicamente às lutas intestinas entre o Parumfabá (Paraíso Umbandista da Família Baiana) e o Moitão-Pastoral, da Diocese petista. Na verdade, a entidade congrega hoje na Bahia muito mais de 967 sócios homologados (chamados pejorativamente de «sócios homem-alongados»), igualando-se às outras praias de nudismo avantajado no Brasil, tipo Tambaúba na Paraíba, e Pinho Velho em Santa Catarina. 

Dos dois quilômetros sob o sol de praias privativas, porém, sem nenhuma privada, apenas 800 metros bem compridos são reservados para a prática do naturismo. Os associados dividem-se em dois tipos: varapaus-sintomáticos e beiçolas-almofadadas, e recebem identificação imediata e discreta no momento da inscrição. Assim que chega ao local, o visitante é recebido por seguranças completamente despidos e, caso queira aderir ao nudismo natural, passa primeiro por um período de «adaptação» em um espaço separado do resto da praia. Ali, ele se encontrará totalmente nu ao lado de professores escolhidos dentre os mais bem-dotados representantes da raça etíope, e irá se acostumando aos poucos ao « roçar natural das peles e se liberando progressivamente da repressão dos alfaiates, das modistas, até ficar à vontade por inteiro, ou seja, aceitando tudo o que a natureza natural lhe empurrar, bem devagarinho, mas sem fazer carinha feia porque aí papai não gosta.” explica o bancário Manoelzinho de Moraes, do comitê de triagem, entre os risos e gargalhadas dos demais associados. Adultos, idosos e crianças estreitam-se assim num clima de confraternização cristã, onde a inibição inicial (flacidez dos visíveis) cede lugar à espontaneidade adquirida intuitivamente (ascenção diagnosticada). 

Rosetando a dorminhoca

Turistas de outros estados, como a belíssima jornalista gaúcha Elke Maria Renner, e o internacionalmente conhecido pediatra paraibano Dr. José Nilton Encosta, o « Metrão », 23 anos, misturam-se maliciosamente entre curvas gravitacionais de peles morenas, ou a estrangeiros de cano curto, como o editor da revista canadense “Virtually Naked Magazine”, o Prof. Bob Westmoreland, 64 anos, que visitava o local pela primeira vez. Bob pareceu bastante impressionado com as ogivas luzidias que ali viu. «Beautiful, very nice ! wonderful ! woooonderful !» entusiasmava-se o magnata, enquanto fazia fotos e anotava os telefones das beldades que se contorciam em variadas poses artísticas na areia, diante da sua grande angular. Dezenas de machos baianos, bem constituídos em seus arsenais retintos, preferiram contudo manter o anonimato, temendo serem reconhecidos pelas esposas ou pela família, quando a matéria fosse publicada. 

A guia turística Rosemeyre Lindembergue, 53 anos, por exemplo, explica que teve que enfrentar esse tipo de comportamento sexual fulgurante há quatro anos atrás, quando seu "guru" e presidente d’ASBANANA, o sisudo ex-padre Miguelzinho Vianna, criou a praia do nudismo natural. “As pessoas pensam que praia de nudismo é safardagem, que é vir aqui pra molestar o cajado do pastor ou bulir com a passarinha de Sinhá. Não é nada disso, meu irmão, aqui ninguém se preocupa com o corpo dos outros, a gente quer mais é curtir a Mãe-natureza e rosetar a dorminhoca. O que está mole está cansado, não é atração e nem nada.”, dogmatiza, enquanto faz pilhéria com o flácido visível de um associado, visivelmente constrangido com a presença do fotógrafo, esse também um associado de última hora e que optou pela omissão total de seus créditos fotográficos nesta reportagem.



domingo, 10 de maio de 2020

O QUE NADA HÁ DE NOVO? a crítica literária de MIROBALDO CANUTO


MIROBALDO CANUTO, vosso crítico literário, 
analisa "Aginopansei" de Odélia Felinto-Castro
 (Sinne & Kwanon Editores, 112 páginas, R$ 56,00)




     Outro dia, ao entrar em conhecida sanduicheria de Copacabana, levei um susto fenomenal. Sentada a uma mesa, falando e gesticulando com a graça de uma garça gris, quem eu vejo? sim, você acertou, ela mesma: Odélia Felinto-Castro, nossa poetisa-maior. Ao seu lado, um todo-poderoso, verdadeira potestade carismática, chapéu negro de abas largas e  bigodaço, que a observava e ouvia, enquanto tirava esporádicas fumaças azuis de um Partagas da melhor qualidade. Quiçá inibido, quiçá decidido a guardar meus votos de humildade pagã, ou quiçá ainda não desejando medir forças com aquele duo de plenipotência literária ali à minha frente, eu preferi então desistir do sanduíche (que o meu estômago reivindicava com todas suas palavras de ordem), e me fui, escapando incógnito por entre alguns fregueses, avançando aos poucos, porém, na certeza de não ter sido percebido pelo olhar inquiridor da poetisa. Mas não andei muito; na primeira livraria, entrei e pedi pelo Felinto-Castro mais recente, como se pede uma cerveja gelada de casco escuro a um garçom alemão. Já com o precioso exemplar dentro da minha belamente curtida bolsa baiana, curvei-me à ingrata sina que me obriga a enfrentar – e em condições das mais críticas – o retorno à casa de hora e meia em ônibus lotado, entouré da pior companhia possível. 

      Muitas horas depois, e refeito do choque, é que me pus a esquadrinhar, com fervor, as novas letras de uma poetisa que, se não fosse a minha calejada e imparcial posição de crítico, eu já teria lhe dado cadeira cativa no elenco dos mais inventivos poetas da nossa língua. De cara, o livro impressionou-me pelo curioso título cunhado pela autora: "Aginopansei". Remeteu-me às viagens semióticas de um Umberto Eco, onde a interação da linguagem inconsciente funde-se com uma certa preguiça na articulação da palavra para daí gerar o neologismo triunfal. O que traduziria o título em vernáculo próprio para Agi, No (ou non) Pensei – construção bilíngüe originalíssima – e que redundaria em português algo como Agi, mas não pensei, ou então, Agi sem pensar. Já na orelha do livro, o editor Bócio Francone alerta para a "invasão crescente de uma semiótica violenta e exterior aos domínios da semântica e do poema", o que corrobora a vocação da obra de ir além das tendências, afirmando-se, soberana, em seu universo próprio e impessoal.

     A linguagem vibrante e sofisticada de Odélia Felinto-Castro utiliza os próprios sinais gráficos e mecanismos da escrita inconsciente como matéria plástica de poesia. Parênteses, asteriscos, cortes, colchetes, superposições, rasuras, aliterações, e itálicos entremeados de forma caótica no texto criam ritmos, situações dramáticas de inconfessáveis intenções. A forma de pontuar (ou de não pontuar) produz efeitos que sublinham a busca de originalidade, essa procura incessante de uma maneira própria de ver e narrar o mundo, porém, de forma impessoal. No seu inquietante No me moleste, mosquitón, pessoas são assassinadas sem o saberem, rasgadas por baionetas, seja em Damasco ou em Saraievo, ou abatidas a tiros numa favela carioca. "Tu num tá veno naum meu não um?// iii vem bala!! § morou… nas bocas (des)ova, é pau só ||| uiiii e dueu,,, %!! ara= achei e chega de cheirar cola – UI, doi dimaissss, pingUIm…." Mas, precavenha-se o leitor, estes não são versos com sentido jornalístico ou de denúncia. Odélia é uma poeta no mundo da rua, em estado de alerta e transformação a cada berro que escute, antenada tanto no que está fora como no que ocorre dentro dela mesma. Deste frágil equilíbrio, do choque dramático entre o sonho, o pensamento sem amarras e a violência da realidade, nasce o lirismo dilacerante do livro, traduzido no verso: "ooorra meu!! iondi fico eu nua nu mundo tãossó §^???." 

      Chamou-me muito a atenção, por outro lado, o erotismo refinado de alguns poemas: trata-se de uma mulher, de uma fêmea bípede e astigmática, uma bela mulher de óculos de grau, diante do mistério do macho sonso e da incertitude do amoroso. É um erotismo indireto, sutil como a vida de um lenhador, e instigante como observar o sexo de uma vizinha através de um binóculo; um sensual cantado de forma inspirada, capaz de transportar quem lê, a outros planos e dimensões, já que esta é, entre outras, a função da poesia e, cá entre nós, uma poetisa do porte e do glamour de uma Odélia Felinto-Castro não o faria por menos. Soma-se ao introvertido poema Trem ninguém naum e seus antológicos versos responsoriais: "tema = não trema / metro a mão = não meta / trem gente = tem gente naum / mi (des)peço A10 = peça NAUM !$*+!"// o exuberante e musical, quase um ícone mesmo da avassaladora poética da autora: "Mi'a bandeira cor de jade, já desci, sì, sì, é a Gal, a colher de pau, mulher de cal, a CAL sim, nhá !---? SiM, a cal, sinhá!?!" 

           Es-ton-te-an-te.

     O livro é muito bem editado, com blocos claramente marcados, entrelaçados pela unidade expressiva do texto poético e seus encontros. Um desses encontros mais interessantes é o No agora do angorá, reunindo poemetos bastante incomuns, inspirados em visões interligadas às artes plásticas. Em vez de descrever mecanicamente o que vê na tela de seu computador, Odélia Felinto-Castro passeia, ri, fuma marijuana, viaja livremente por aquilo que as imagens lhe sugerem, e as esboça com gestos e versos, ora pudicos, ora visivelmente obscenos. Em Perdi o meu c'oum KAra, um bloco de poemas dedicados a pessoas com quem a autora relacionou-se sexualmente de maneira informal, encontramos uma preciosidade de voyeurisme, dedicada a seus avós maternos, na cama que "ardente soluça-ça geme (ça j'aime) foi gemer na reta / arre a retaguarda dela e atarracha no arracha / a tora na tara em posição crucial". É a própria essência da Poesia de vanguarda desnudando-se no palco das verdades mais assumidas.

      
       No fim, naquilo que Odélia chama de "coincidências emprestadas", ficamos sabendo de onde vieram frases ou trechos de textos apropriados pela autora. Ela assume que usa trechos alheios, recriando-os, fundindo-os com seus próprios em soluções algumas vezes surpreendentes, como retirando no título do conhecido soneto "E aí, poeta, dialeta?" do saudoso Daniel Monge, o seu mote Não dialeta de medo, poeta?. Já no Mulher de banho tomado, é flagrante a "coincidência" que fez aos versos do poeta amazonense André Beça no seu pouco expressivo Um poema passou pela rua, de 1997, onde, além de ter "emprestado" um verso inteiro do poeta como integralidade do título, Odélia utiliza o verso original de Beça "àquela sua boca que ninguém sabe", transmutando-o de forma genial no "àquela sua bunda que ninguém sobe". Flagrante delito poético, porém, transcendantal.

No entanto, em outros casos, como em "Você sim, Rabeau", a poesia torna-se quase circunstancial. E também em alguns momentos de prosa poética (ou crônicas poéticas, como ela própria chama) não sentimos a mesma força desta fêmea capixaba e poetisa, e que é, segundo ela mesma, uma Gata ascendente Leoa faminta! (sic). Pois então, se dentro da lei da jungle literária imperar uma conhecida máxima, saberemos que se o leitor corre, o livro pega; e se ficar, a leoa...


sábado, 4 de abril de 2020

CARAMBA, JÚLIA PRODO ENTREVISTA !





Júlia Prodo entrevista o poeta experimental MALCOLM GREY*




JÚLIA PRODO: Caro Grey, é uma honra para mim poder inaugurar este espaço pioneiro da cultura poética brasileira que se tece através dessa curiosa e sintomática rede a que chamamos blogosfera, tendo você como a primeira pessoa entrevistada. Gostaria que nos dissesse até que ponto você é consciente das idéias no seu processo criativo, você poderia nos explicar um pouco desse fascinante processo de gestação interna de um poema, de uma obra?

MG: Posso sim, mas lhe adianto já que a criação não existe. Não existe criação assim como não existe obra. Você mesma, Júlia, você não existe, é a projeção de uma idéia, apenas. Por isso fica difícil falar do que me leva e do que me traz. O metrô, por exemplo, leva pessoas. Leva idéias, emoções, sentimentos… veicula um todo abstrato através de uma estrutura concreta. Mas se você inverte o processo e concretiza essa idéia, essas emoções e esses sentimentos, o metrô passa a ser uma figura abstrata. E como o abstrato só existe no mundo idealizado, o metrô vira idéia, já não é mais meio de transporte algum. É idéia. As pessoas vêem um cortejo de outras pessoas sendo levado pela noite sobre trilhos e ficam sem entender nada, porque não vêem o abstrato que as conduz. Para elas, o metrô não existe. No momento em que a idéia vira livro, ela passa a não mais existir como idéia, mas como livro. Daí o meu mais absoluto repúdio a toda e qualquer concretização daquilo que habita o meu imaginário. Se o fizer, a minha criação deixará de existir e passará a ser apenas uma projeção de códigos semióticos e gráficos. Não existindo criação, não existe obra. Elementar.

JP: E por que, no caso, eu não existiria?

MG: Porque é matemático. É uma proposição que se faz dentro da lógica matemática e, sendo reversível, ela se anula a si mesma. Se você é a entrevistadora, eu sou o entrevistado. A recíproca seria, se eu sou o entrevistado, então você é a entrevistadora. Suas perguntas se baseiam na minha obra. Se não existe obra, não há porque existir perguntas. E se não há perguntas, não há porque existir entrevistadora. Ora, não existindo entrevistadora, logo, você não existe. É uma projeção associada a uma condicional, no caso eu, e que, não tendo obra e nem me considerando um entrevistado para falar acerca da minha não-obra, logicamente que eu também não existo. A negação da negação é a afirmação. Mas a negação da negação da negação é a própria negação. 

JP: Entendi. Quais são algumas das influências que marcam a sua obra: você poderia nos falar sobre alguns espaços urbanos, ou rurais, uma mãe possessiva, talvez, o seu cotidiano, que objetos ou autores?

MG: Mãe possessiva... sim, eu tive várias mães possessivas, mas eu fazia abstração e todas elas desapareciam. Só muitos anos depois, andando sozinho por uma trilha na Chapada dos Veadeiros, eu ouvi um canto, vindo de uma cacimba ali por perto. Era uma de minha mães que cantarolava uma canção de Altemar Dutra. Isso me enterneceu. Me influenciou. Mas, como costumo dizer, influência é algo sempre muito relativo. Vá anotando. Em meados da década de 50 foram surgindo as primeiras influências de um Mancha Negra, de Hawita e Pão de Mel, do Sargento Preston da Polícia Montada, de Tarzan, do sabonete Gessy-Lever, de Monteiro Lobato, do Q-Suco, de Cely Campelo, da caneta Parker de duas cores, da Rural Willys, de Vinícius de Moraes, do leite Glória instantâneo, da cor amarela, de "Manduca no Tempo da Colheita", de Jorge Luís Borges e do creme dental Kolynos. Na década de 60, tudo mudou de repente. Anota: James Joyce, João Cabral de Melo Neto, Jerry Adriani, o creme para pentear Brylcreem, Helena Sangirardi, o Aero-Willys 62, a casa Hobbylândia, Ferreira Gullar, o Boeing 707, a cor verde-abacate, René Char, a canção "No Milk Today", os concretistas paulistas, Flávio Cavalcanti, o perfume Vitesse, Leila Diniz, a letra M, o Pedrinho Aguinaga, Marshall McLuhan, Taiguara, Terça-Feira Lobsang Rampa, o sabonete…

JP: Perdoe-me ter que interrompê-lo, caro Grey, mas pelo que você cita acredito que você aceitaria a tese de  Arnold Ludwigstein, dentro da teoria Gestalt, de que a percepção visual é um ato cognitivo. Qual a sua opinião sobre os conceitos estudados por Ludwigstein?

MG: Vou lhe dizer, Júlia: é a mesma daquela estátua do finado mestre Ataliba, lembra? aquela da propaganda de uma cerveja e que, no dia da sua inauguração, olhou para os convidados e disse: E vocês vieram aqui para beber ou para conversar? (risos) Ludwigstein é fácil demais e, por isso mesmo, fica muito difícil falar de Ludwigstein. Porque ele é uma influência total, assim, cósmica, o infinito ideal que eu posso conceber de uma coisa ilimitada. Mas, ao mesmo tempo, ele é uma coisa muito simples. Como o Niemeyer. O Jorge Mautner costumava me dizer: "Aprenda tudo com ele…" E eu aprendi, naturalmente. 

JP: Na sua anti-obra de 1987, "Desconstrução da forma inversa pelo oposto de seu contrário" você critica a radicalização de uma certa vanguarda em envolver conteúdos políticos no processo de todo processo de criação associado a um dado de realidade. Você ainda acredita nesse tipo de, digamos, marginalização das artes, da literatura, através do engajamento político?

MG: Acredito sim, mas não lembro mais qual era a minha posição naqueles anos lá. É a recorrência, entende, Júlia? o retorno das idéias, das mesmas emoções do cotidiano, as que não tem razão alguma de existir. A gente projeta conteúdos e se esquece. Projeta e esquece. Esquece e projeta. Tem uma canção do Gil que fala de algo assim, de ver o mundo como um grande mapa geográfico e sair colorindo ele com lápis de cor…. espera, isso me deixou meio estranho. Espera! pintou uma onda na minha cabeça agora…. espera. Vou criar alguma coisa…. (faz grandes gestos com as mãos)…. vou criar…. espera. (fica em silêncio por instantes) Não, é melhor não. Vou deixar pra lá, não deu. Estava quase saindo mas não deu. É que você falou nessa história de marginalização e isso me tocou. Eu acreditava, sim, acreditava em todos os óbvios pré-existentes. Mas hoje já não tenho mais certeza. A gente muda.

JP: É, muda sim. Grey, há muitos poemas seus que eu gostaria de comentar nesse nosso diálogo, mas por falta de espaço vou selecionar aqui apenas o poema visual "Minas Gerais, Brasil", para muitos um exemplo de virtuosismo literário, para outros um monumental equívoco. Para aqueles que não o conhecem, "Minas Gerais, Brasil" é um poema constituído apenas de uma reprodução do mapa de São Paulo(!) com um imenso par de óculos de grau desenhado a tinta preta em primeiro plano. Você poderia nos explicar as forças ou os agentes que motivaram a criação deste poema?

MG: Olha, este poema foi criado em 1969, numa época em que eu estava me preparando para fazer concurso para o Banco do Brasil em Salvador, Bahia. Uma noite, eu estava estudando com uma antiga namorada, que era mineira, e haviam vários mapas espalhados pelo chão da sala. Num dado momento, meio sem jeito para dizer a ela que eu já estava com uma outra, (risos) aí eu peguei um dos mapas e, achando que era o de Minas, eu lhe dei, assim, sem mais. O objetivo era de que ela entendesse a mensagem. Só que ela me olhou sem entender e me disse: "Mas o que é que eu faço com este mapa de São Paulo?" Foi então que eu me toquei que tinha lhe dado o mapa errado. Com raiva, pus o mapa na mesa, peguei um pincel atômico e fiz um imenso par de óculos de grau, bem "fundo de garrafa" que era para eu deixar de ser burro e ver melhor as coisas antes de dá-las a alguém. (risos) No entanto, ficou a idéia de que, para mim, era um mapa de Minas. Mesmo sendo o mapa de São Paulo. Anos depois, casado com essa mineira (como eu não tive coragem para lhe dizer que eu tinha outra, então eu terminei com a outra e me casei com ela) e já morando no Rio, ao rever esse mapa, eu tive então uma trip. Estava ali o poema. Ali estava um imenso poema, na verdade. A abstração de um Estado conduz a um outro através das lentes que nos levam a fazer essa abstração. Olhando São Paulo através daqueles óculos eu via Minas. E a recíproca também seria verdadeira, caso o mapa fosse o de Minas e, no caso, a namorada da época uma paulista. O espectador que se interroga diante deste meu poema visual, poderá até estranhar no início, mas será normal. Porém, se insistir, ele vai chegar à mesma trip que eu. E vai deduzir que vendo São Paulo, ele pode ver Minas, é só uma questão de predisposição interior para aceitar a abstração. E, para ele, não existirá mais São Paulo, apenas Minas. Porém, como Minas não existe de fato, pois o mapa é de São Paulo, aí tudo vai oscilar no relativo. A percepção de um Estado anulará a outra e Minas vai então deixar de existir. Sem mais Minas e nem São Paulo, ele não verá mais nada, nem um Estado nem o outro. Logo, o poema deixará de existir. Assim como a criação que, como eu disse antes, também não existe. Nem a obra. E nem você. E nem mesmo eu.

JP: Muito obrigada, Malcolm Grey.



* O poeta capixaba Malcolm Grey, nascido em 1950 e de seu verdadeiro nome Edmylson dos Santos Mendonça, é poeta dentro da linha vanguarda experimental, pós-moderno e pós-concretista, cuja proposta de "obra ausente" se insere na dialética validade intrínseca do artista vis-à-vis da perenidade de sua produção. Sua única obra – ou "anti-obra" como ele próprio a designa – publicada sob forma de encarte em um livro-coletânea de poetas universitários de 1987, teve todos os seus exemplares incinerados em ato público promovido pelo autor, à guisa de repúdio civil ao aumento das passagens dos ônibus urbanos da capital paulista, ocorrido naquela ocasião. Desde então sua criação se faz espontâneamente porém sem registro algum em nenhuma forma de suporte material.

segunda-feira, 30 de março de 2020

O QUE NADA HÁ DE NOVO? a crítica literária de MIROBALDO CANUTO


MIROBALDO CANUTO, vosso crítico literário, 
analisa "O Ar Rôto das Madrugadas" de Magda Pirella
 (Edições da Arara Cristã, 97 páginas, R$ 60,00)



Sempre que meço a dimensão de um livro, a tendência é, obviamente, de olhá-lo pelo lado que não me faça admirar a obra. É preciso sufocar toda e qualquer veleidade de admirador, que não me deixaria ver as possíveis gafes do autor ou autora, e me arrastaria pelas ruas da crítica mal feita, levando uma carga de favoritismo de quem a redige, e que só atrairia apupos e onomatopéias de um leitor mais ou menos esclarecido. No entanto, tão logo caiu-me às mãos um exemplar do esbelto livrinho de Magda Pirella "O Ar Rôto das Madrugadas", eu já senti que se tratava de uma obra de peso. Isso porque o "Ar Rôto" é bem mais do que um mero livro : é obra. Para um poetisa temporã – a autora se lançou na aventura das letras já na casa dos cinqüenta – e que teve um árduo caminho de ano e meio para chegar até uma grande editora, algo infinitamente notável para um escritor iniciante, Magda Pirella, do alto de sua figura de matrona quatrocentã, impressiona. Sua poesia desconcerta. Comove. Indaga. Incomoda. Acontece. E como se não bastasse, seu livrinho-obra, ao ser publicado e distribuído em larga escala através dos vasos de venda mais mediáticos,  abriu ao grande público o conhecimento de uma nova proposta de poesia escrita aqui no Brasil, um mercado pequeno, amorfo e quase sem vida, mas que passa, aos poucos, a expandir morosamente os gases de sua digestão lenta e desinteressada às camadas sociais ditas emergentes.

A maquiavélica luta entre o Bem e o Mal, e que desde sempre nos foi contada e recontada à exaustão e nas mais variadas posições, desaparece por completo já desde os primeiros versos da poetisa barriga-verde. O que deixa o leitor perplexo, infeliz, quase aviltado. Porém, Magda insiste em retomar as possíveis interdependências entre o que é bom e o que é ruim. Por sinal, nela os conceitos e sintaxes pairam no ar como se fossem laranjas nas mãos de um saltimbanco de feira. A autora parece se divertir em contracenar consigo própria como neste inquietante "Monólogo de mim para mim mesma" onde as justaposições dos sentidos criam uma espécie de sala de espelhos poética diante dos olhos entorpecidos do leitor. "Você se conhece, Magda? não, eu não te conheço, Magda." Os bordos afiados da lógica pirellana, fria e implacável, ferem frontalmente a nossa sensibilidade cristã, mas nos fazem enxergar mais além das mangueiras do quintal do vizinho. Nesse magistral poema, a plurissemia abunda. "Abra-se mais, mulher, vai, relaxa... / assim sentirás menos o doloroso / daquilo que a tarde te empurra / aquilo que te abre em duas…"  Para finalizar com uma mensagem explicitamente codificada : "Agora cansei, periquita, / estou saindo pro cabeleireiro, / tchau!"

A poetisa tem uma tal intimidade com as palavras, escrevendo-as certas vezes de forma rebuscada, outras de forma incompreensível a todo neófito literário, que, por momentos, o apego se desvanece em busca de uma indagação. E esse é um dos pontos altos do livro. A sincronicidade aleatória dos eventos no tempo da narração é também um outro milestone neste livro tão singular. Em seu pananacromático poema "Vim-Fui-Vou-Virei", uma pequena obra-prima de transcendentalismo tropical, Magda brinca com os sentidos nas diagonais do tempo cronológico, alternando coerências com frivolidades, como se auto-parafraseando dentro de um carrossel lúdico, atemporal. "Meu ontem de amanhã será mamãe / e meu filho virá do meu passado / eu, que voltei do que fui sem ser o que sou, / vou cega, surda e muda daquilo que não fui." Pois é, assim como o vento sopra aonde quer soprar, a genialidade também apronta as dela – e aonde menos se espera. 

Poeta de seu tempo, revolucionária e provocadora, Magda Pirella não poderia deixar (elementary, my dear Watson) de incursionar pelo universo do sensual, das reminiscências de boudoir, do submundo onírico e quase incestuoso, seja saído de seu vivido, ou apenas de sua fantasia. Pouco importa, a sua poesia toma cada leitor pela mão, agitando-o, desnudando-o e levando-o a dar um mergulho em inconfessáveis emoções, como no arrepiante poema de título simétrico "Minha Mão Tão Minha" : "Somos inseparáveis, eu e minha mão / desde já o primeiro comichão / indicador mexendo no tinteiro / polegar fingindo contar dinheiro / vai a galope a imaginação /... "  De tirar o fôlego.

A intensidade poética que se distribue em trinta e três poemas, marcados a fogo olímpico em originalidade, e borrifados com a aragem seca do desprendimento, personifica os acasos e sedimenta o oportuno na obra de Magda Pirella. A leitura do seu já antológico "O Ar Rôto das Madrugadas" proporciona ao leitor uma vaga sensação de vazio, de travessia de um deserto literário ainda inédito, onde letrinhas de macarrão se entremeiam a sensações perfunctórias, magnetizadas por alusões que se entreolham e se desconhecem, e que nos levam a duvidar dos reais sentidos da existência. Proposição intencional ou cruzamento de casualidades? a indagação fica no ar, na linha sinuosa da boca desenhada a batom escarlate da autora, à guisa de um recado de Esfinge a todo passante que se lhe depara, como neste magnífico verso "… afinal, / todo seio reconhece a boca que o conhece." 

Trans-cen-den-tal.

sábado, 29 de fevereiro de 2020


A CRÔNICA POÉTICA DE EVA MARIA LUPINO







UM LIVRO QUE MEXEU COMIGO

Outro dia, morrendo de frio depois de ter andado horas no centro da cidade sem saber onde deixei o meu carro, eu resolvi então entrar na primeira loja que aparecesse para me aquecer um pouco, antes de voltar à minha ingrata busca. Felizmente que a porta dava para um sebo de livros, o que me fez esboçar um discreto sorriso na minha expressão de enfado. Dei-me ares de cliente, e logo passeei o meu olhar pelos títulos que se exibiam em prateleiras algo vetustas e empoeiradas. Após dez minutos de capas e orelhas desinteressantes, eu já me preparava para voltar a ser picolé, quando meu olhar se espetou num título: A Nudez dos Meus Dias. E depois alfinetou-se em um nome: Cassandra Matarazzo.

Meu coração, assim de chôfre, não acreditou, mas mesmo assim eu percorri algumas páginas e não tive dúvidas: era mesmo o livro que eu tanto quisera ler na minha adolescência, mas que me fôra sempre vetado. Censura de pais e do país. Depois, esse livro sumiu de todas as prateleiras, de todas as bibliotecas e das estantes de todos meus amigos. Eu já estava até resignada a não lê-lo mais, quando me deparo com este, providencialmente, numa tarde fria e num sebo dos menos apetitosos. Paguei o livro e retomei o caminho da rua gelada. Subindo de volta uma ladeira por onde já tinha passado, lembrei-me que meu carro, na verdade, estava na oficina naqueles dias, que eu saíra a pé de casa. Suspirei e calei palavrões terríveis que ameaçavam jorrar da minha boca. Chamei o primeiro táxi que vi, e afundei no assento, amuada, até chegar em casa. Paradoxalmente infeliz pois, afinal, acabara de comprar o livro que busquei desde a primavera dos meus dia. Na sala, já muito bem instalada no meu sofá azul, deixei-me levar pelos aromas de um maravilhoso chá indiano de canela e folhas medicinais e, preparando-me já para os primeiros espirros, entreguei-me finalmente às letras de Cassandra Matarazzo.

O livro dessa ex-professora do interior que se tornou escritora maldita, é, na realidade, uma autobiografia sem meias-palavras, um relato de sua experiência no alto baixo-mundo das cortesãs da elite social de homens políticos, industriais, publicitários e gente de rádio e televisão do início dos anos 60. Roupa suja lavada na praça, pau puro. Aliás, Cassandra recebeu inúmeras ameaças de morte, foi perseguida e coisa e tal, mas jamais processada. A razão? eminentes juízes, jornalistas e generais deste belo mundo tinham já conhecido os seus favores e temiam que houvessem cópias, mesmo fotos, que pudessem comprometê-los. Viver entre navalhas cruzadas a sabres – de arrepiar. 

Quando comecei o primeiro capítulo, onde, através de um soneto, ela fala de uma amante, coisa que deve ter chocado o discreto charme da moral burguesa dos leitores no final dos anos 60, meu interesse cravou suas unhas esmaltadas neste primeiro quarteto:

Eu te conheço, Eva, inteirinha!
Sei das provas "coladas" na escola..
Do teu priminho que não te dava bola...
Dos teus esconde-escondes com a vizinha...

No início fiquei em dúvida e pensei: será que é mesmo comigo? Não, eu não sou a única Eva do mundo. Nem fui a primeira, e nem serei a última. Logo... Mas, essa aí de priminho que não me dava bola? estranho. Teria sido o João Alfredo?…. ou o Ronan, que já faleceu? estranho. A história é que, sem que eu saiba porque, a palavra "inteirinha" aparecia sublinhada a tinta vermelha. Não sei também porque ao lado da palavra "priminho", havia uma estrela com um ponto de interrogação. E nem porque da palavra "vizinha" saía uma flecha para as iniciais L. B. no rodapé da página. Leila Belmonte…. seria?… ou então Luísa Bellotti Barroso? mas aí seria um L. B. B. Cheia de dúvidas, continuei lendo aquele intrigante soneto apócrifo.

Lembra daquela velha camisola
De hippie que tu usavas sem calcinha?
Lembro até do que tinhas na sacola,
As coisas que fumavas com a Verinha…

Sim, eu usava uma camisola de batik na época em que era hippie, sim, mas essa história aí de sem calcinha.... não sei.... Como posso lembrar, faz tanto tempo. E Verinha… mas que Verinha?… a Verinha Pettinati, aquela antipática? não, espera um pouco… tinha uma outra Verinha também, a que fazia Arquitetura. A gente almoçava junto, às vezes, e saía também de vez em quando…. mas, ela fumava? não lembro mais. Ah, e havia também a Vera Cruz Filisberto, a Verinha Fumacê, que foi miss universitária, galinácea como ela só, dormia cada noite em uma casa diferente… será que é ela? Deus do céu, como posso saber?… gozado, o que quer dizer essas aspas que puseram na palavra "coisas"? e esse número aí, 67.32.35 ao lado do "calcinha"… parece mais telefone dos anos setenta… Deus do céu, será que eu andei dando o meu telefone a algum poeta anônimo que não devia, naqueles anos lá?…

Essa imagem de ti que ainda trago
Na brisa da saudade, dói e balança,
Misturam-se a um sentimento vago

Da casa dos teus pais, na antiga rua...


Ah, eu achei tão bonito esse quarteto... será que o autor, ou autora, é gente que me conhece? até parece... Deus do céu, quanta coincidência! ou, quem sabe, alguém que me admirou em silêncio, à distância, durante anos, e que um dia se tornou poeta, talvez até um célebre poeta, com sonetos que fazem parte da antologia poética de uma grande editora!.... estou me sentindo até um ser humano muito privilegiado agora. A platônica Musa de um tímido vate, quiçá, de um grande nome das letras nacionais... nossa, jamais me imaginaria em um papel desses, juro.

Mas, de ti guardei a melhor lembrança:
Aquela foto em que estás toda nua.

Aqui me deu aquele arrepio. Foto minha? onde eu apareço nua? ai, ai… no momento, fiquei todinha arrepiada. Deus do céu! Pior ainda: ao lado do último verso, escrito na mesma e irritante tinta vermelha, havia o endereço de uma página internet. http://www… 

Vocês acreditam que, até hoje, eu ainda não tive coragem de passar lá?

domingo, 9 de fevereiro de 2020

RONNIE LEU POR VOCÊ




as melhores novidades literárias de Ronaldo BUSCHETTA



Nos Estados Unidos da América, algo de muito estranho acontece. Durante uma maratona, na cidade de Halleluyah, um avião de passageiros sequestrado por cyber-terroristas espatifa-se na rua junto à linha de chegada. Cenas de horror, de morte, de confusão e de muito sangue como só americanos podem criar, mas que não impedem que a maratona continue e que tenha mesmo um vencedor, o texano Jimmy Cobreas. Em meio a grande tumulto e corpos carbonizados das vítimas do desastre, o pelotão de africanos que liderava a maratona contesta firmemente a vitória, alegando que Jim Cobreas estava no público e próximo à linha de chegada, e que foi considerado vencedor de forma trapaceada pelos organizadores. 

Em uma cidade próxima, Mellow Creek, semanas antes, com a ajuda de jovens internautas através de redes sociais, a polícia local conseguiu descobrir no subsolo de uma casa nada suspeita, doze mulheres e sete crianças de diversas idades vivendo em condições inumanas. Foi então que chegaram à conclusão que se tratava de pessoas que foram sequestradas há 18 anos atrás e dadas como desaparecidas ou mortas. A notícia se espalhou e, em meio a grande emoção mundial, os familiares das vítimas apontam Juan Areas Gontillo, um ex-médico panamenho aposentado como bombeiro hidráulico, como o responsável pelos seqüestros e estupros. Os policiais então iniciam uma verdadeira "caça ao homem", utilizando os meios mais avançados da criminologia durável e da informática de cultura biológica. Com ajuda da NASA, todos os indícios conduzem, finalmente, a um homem de nome James Earl Cobreas, um ex-professor texano aposentado como chofer de táxi. Ora, Cobreas é a mesma pessoa que oficialmente vencera a controvertida maratona de Halleluyah, sob os protestos dos atletas africanos que lideravam a prova. 

No outro lado do país, em Playa Dorada, uma menina sardenta surge em todas as manchetes dos noticiários. Trata-se de Mary Ann Simpson, de 11 anos, atingida por uma doença que os melhores especialistas não conseguem descobrir, e torna-se em poucos dias uma criança possuída pelo Mal, que caminha para a morte semeando destruição à sua volta, ao mesmo tempo em vai se apagando numa agonia atroz. A questão é que os pais de Mary Ann Simpson, junto com o médico que dizia ter descoberto a cura para ela, estavam no avião que havia sido sequestrado e lançado sobre a multidão na reta final da maratona de Halleluyah. E, infelizmente, todos estavam mortos.


O livro Das Duas, Quatro de Harold Pointer, é aclamado por todo o mundo, e considerado um dos maiores clássicos da literatura de ficção de todos os tempos e de todas as culturas. E, como era de se esperar, transformou-se em filme. E quem assiste o filme, lê o livro, ou pelo menos já ouviu falar de um dos dois, tem todas as condições para fazer uma excelente crítica do mundo atual, salvo, é claro, alguns poucos do contra que sempre vão criticar o livro ou o filme  mas isso é normal, vocês não acham?

O filme, pelo que ouvi falar, e por alguns trechos que vi no YouTube, é uma cópia fiel do livro, salvo uma ou outra cena, que na minha opinião, não seria necessário colocá-las. Falo das terríveis cenas de fratura exposta vistas no acidente, detalhes horripilantes nos corpos carbonizados, e aquela em que Mary Ann masturba-se de forma explícita diante da câmera de segurança de um shopping center. Constrangeram-me. Pelo visto, os roteiristas acharam o mesmo, mas terminaram se dobrando às exigências de Don Carreras, um dos produtores do filme. Muitos dizem que o filme é melhor que o livro mas, pelo que percebi no filme, assim que vemos Maximus, um dos terroristas que sequestrou o avião, logo se percebe que ele também está possuído por algum demônio, ou até mesmo pelo proprio Satanás, segundo Jay Ophreenbeck, um senador republicano entrevistado pela mídia. Para mim, isso fez o filme perder alguns pontos em comparação ao livro. 

O livro tem todo um suspense que prende o leitor da primeira à última linha. Toda a investigação, teorias de doenças mentais e afins, técnicas de como sequestrar um avião, dicas de como se ganhar uma maratona, pormenores íntimos da vida em cativeiro das dozes mulheres, tudo isso leva para que, só pertinho do final, todos aceitem a hipótese de um caso de possessão demoníaca. Ou não.

Uma das coisas que mais me chamou a atenção, foi a escrita, pois vejam bem, esse livro é de 2010 e, mesmo já existindo palavras asquerosas em sua leitura — não vou citá-las aqui pois o responsável por este blog proibiu-me expressamente de não fazê-lo — o modo como todo o resto do livro é escrito me encanta, possuindo todos os -lhes, os se, os -nos, enfim, todas as partículas adverbiais e afins. O Harold tem o total controle dos pontos soltos e da forma como o livro se desenvolve, é um verdadeiro mestre da literatura do nosso século. Realmente uma leitura intrigante e ótima de se fazer.

Como acontece em todos os livros de Harold Pointer — e com Das Duas, Quatro também não poderia ser diferente — há partes que são extremamente irritantes e de um tédio mortal, o que nos dá vontade de jogar o livro na parede, ou simplesmente avançar as páginas, ou utilizá-lo como papel higênico ou mata-môscas. No entanto, creio que o Harold percebia isso e colocava momentos importantes na história de vez em quando, para atrair a atenção do leitor. 

Quanto ao final…. bem, não vou contar para vocês, é lógico. Mas posso dizer que não aconteceu absolutamente nada do que eu tinha imaginado. Pior ainda, um fato transcorreu que me deixou decepcionadíssimo. Mas, tirando isso, não me arrependo nem por um segundo de ter lido Das Duas, Quatro de Harold Pointer, muito pelo contrário, eu o recomendo e, se você ainda não assistiu ao filme, leia o livro primeiro e depois o compare-o com o filme. 

Ou, se você for do contra, nem uma coisa nem outra.


Das Duas, Quatro de Harold Pointer, Companhia das Vírgulas, 542 páginas, R$ 44,00.


terça-feira, 21 de janeiro de 2020

CARAMBA, JÚLIA PRODO ENTREVISTA!





Júlia Prodo entrevista a filósofa BELMIRA SANTOS-KNUPP*




JÚLIA PRODO: Professora Doutora Belmira Simone Santos-Knupp, é com grande honra para mim que a recebo aqui, neste espaço exígüo da cultura brasileira, mas que vai se tecendo e aumentando a cada dia que passa, através dessa plural e sintomática rede virtual chamada blogosfera. Gostaria que a senhora se sentisse à vontade e que nos expusesse, sempre da forma mais franca, todos os seus pontos de vista, sem reticências de qualquer espécie.

BELMIRA SANTOS-KNUPP: Muito obrigada. Em primeiro lugar, eu gostaria de relevar que a honra maior é minha de estar aqui com você, minha cara Júlia, neste espaço exígüo, como você mesma diz. E em segundo, que eu preferiria que deixássemos de lado o rigor desse nosso tratamento formal em prol de uma fórmula mais simples, mais coloquial mesmo, e que nos tratássemos por você. Proposição aceita?

JP: Sim, é claro, aceita e com prazer, por que não? eu também me sinto mais à vontade assim, através de um tratamento mais informal. Perfeito. Pois bem, Belmira, vamos à nossa entrevista que, tenho certeza, será muito enriquecedora a todo aquele que a ler. No seu livro Da Angústia in vitro à Superação do Abismo, de 1989, a senhora…ou melhor, você nos livra uma idéia plurissintética sobre os diversos aspectos da angústia humana. Qual a diferença, pois, entre a angústia vista pela psicanálise e pela filosofia?

BS-K:  Esse livro, que você citou, é uma obra que data já de alguns anos e nele minha visão era a de uma mulher que acabara de sair de uma separação dolorosa, dolorosíssima. É, portanto, entremeado de conteúdos emocionais nem sempre estáveis e nem sempre idôneos, o que, de certo modo, interferiu em alguns dos conceitos emitidos. Ressalva feita, devo dizer que a filosofia e a psicanálise lidam com angústias distintas, ou seja, a angústia mental e a angústia psíquica. A psicanálise, esse mal do nosso século, luta contra a angústia patológica, um conflito por vezes prazeroso entre o desejo e a moral social, cristã, ainda por cima, numa tentativa de reconciliar o indivíduo consigo próprio para asservir-se dos demais. No entanto, mesmo se atingíssemos um estado ideal de perfeita saúde mental, emocional, passional e afetiva, depois de 30, 40 anos de análise bem sucedida, restaria mesmo assim a angústia metafísica, a busca do objeto de fé. É aí, minha tão simpática Júlia, que começa a filosofia a ensinar-nos a alcançar a sabedoria no sentido de buscar o hedonismo, a transpor o umbral da fé para mergulhar nas águas do prazer maduro, sem mais aquelas reticências coibitivas da moral cristã, em suma, a buscar a felicidade maior e mais consciente.

JP: E nesse caso, Doutora, eh... Belmira, o que há na filosofia que a religião não tem?

BS-K: Maravilhosa pergunta! por sinal, abro aqui um parêntese para fazer um elogio ao timbre cristalino desta tão bela voz que você tem, Júlia, de uma agradabilidade total aos meus ouvidos, eu diria até, desconcertante! (risos)  

JP: ... agora fiquei até um pouco encabulada, confesso.(risos) Muito obrigada, Belmira, é realmente muita gentileza de sua parte.

BS-K: De nada, querida. Voltemos ao mérito da sua brilhante questão. Veja bem, tanto a grande religião quanto a grande filosofia pretendem fazer com que as pessoas deixem de ter medo, que elas se dispam dos mantos (ou das camisolas) de preconceitos, arraigados que estão desde a mais tenra infância. Essencialmente, o que a religião diz é que, se alguém tem fé, se acredita em Deus, não precisa ter medo. Não precisa, por exemplo, temer a morte porque, através desta, vai-se encontrar com o Homem – ah, sempre esse Homem aí! (risos) essa eterna ingerência masculina, geradora de fobias e preconceitos. Logo, as religiões são a doutrina da salvação pela fé e que, cá entre nós, jamais vi algo de tão ridículo. Salvar pela fé em que ou em quem? Já as filosofias querem, porém cada qual segundo sua linha, a mesma coisa: salvar todo ser humano de seus medos. Dentro do meu método, ela preconiza salvar as mulheres do medo que as impede de viver bem, através do prazer realizado e consciente, sem tabus nem formalismos, da forma mais simples, mais inocente e mais aprazível. Assim como o amor entre duas mulheres, por exemplo.

JP: Penso que entendi. E no caso mais próximo de nós, Belmira, com a disseminação do medo, ficou mais difícil superar esse obstáculo para a salvação de cada ser humano?

BS-K:  Agradou-me sobremaneira esse seu "mais próximo de nós, Belmira". Estimulante. (risos) Pois bem, a primeira grande resposta a essa tua tão perspicaz pergunta, Julinha, já esboçara seus primeiros gestos na minha obra A Solidão ao Feminino, de dois anos atrás. Nesta obra, no terceiro capítulo, eu desenvolvo métodos de como uma mulher estará apta a vencer os maiores medos da existência humana dentro de si: o medo do passado e do futuro. Esse passado, que nem sempre lhe foi bem costurado, um passado raramente contensor, onde a figura paterna impôs seu ferrete sob a forma de ícone patriarcal absoluto, intocável, ou então, sob a forma de marido opressor, desleal, egoísta. Sobra, portanto, à mulher, a opção do futuro, onde seus projetos nem sempre são claros e, pouco objetivos, tendem a levá-la a um ciclo de indecisões, ciclo este gerador de estados de angústia ou de apatia. Os filósofos gregos diziam que o sábio é aquele que consegue pensar menos no passado e ter menos esperança. O passado já aconteceu. O futuro é uma ilusão, Ju. Vivamos o presente tal como ele se nos apresenta, com suas grandes e macias almofadas, convidativas, à meia-luz, e liberadas das peias insensatas dos nossos preconceitos mais incoerentes.

JP: Entendi, ou melhor, penso ter entendido, Belmira...

BS-K: Você entenderá tudo, tudo, um dia, Ju, tenho certza. Me chame de Bel, querida. 

JP: Está bem, obrigada. Bem... é... retomemos os nossos tópicos... aos pouquinhos. (risos nervosos) Deixa ver.... ah, você nos falou deste seu livro A Solidão ao Feminino, de 1998, todavia, mesmo com essa ampliação da ótica e de certos conceitos surgidos nos últimos anos, decorrentes dos mais diversos movimentos de emancipação da mulher nos setores mais ativos da sociedade, gostaria de saber se, no panorama universitário do ensino da filosofia, teria havido ou não uma resposta  semelhante. 

BS-K:  Houve sim uma mudança neste sentido dentro do ensino da filosofia, uma guinada da prática para o discurso, decorrente da vitória do feminismo sobre representativo setor do patriarcado dominante no mundo ocidental, as evidências o corroboram. Mas, veja você, meu anjo, a partir da Idade Média a religião assume um papel cada vez mais importante que a filosofia, e isso fez com que se abrisse a caixa de Pandora a todo gênero de repressões e preconceitos. A religião, infelizmente, detém o monopólio do que é a vida beata, do que é a salvação da alma e baboseiras tais, e proíbe a filosofia de cuidar dessa questão. É aí que a filosofia se torna apenas um discurso, uma análise de conceitos e não mais uma prática que tem por objetivo ensinar a mulher a conhecer-se a si mesma, descobrir e compreender a semiótica de sua própria libido e buscar, não mais sob arquétipos patriarcais ou religiosos, mas na interação com uma outra alma feminina, uma anima parecida com a dela, isso é fundamental, lançar os alicerces da felicidade consciente que ela tanto almeja. Escolhi o título A Carência Delicada para difundir a idéia de que a filosofia não é apenas um discurso, mas um aprendizado da vida através da liberação dos auto-entraves. Resumidamente, essa filosofia fará você ainda bem mais feliz, Ju, está escrito nesses seus tão belos olhos. (risos)

JP: (risos) Obrigada, você me deixa sem palavras...

BS-K: E para que palavras, meu amor, quando os olhos já falam mais que toda a filosofia do mundo, não é?

JP: (risos mais que embaraçados) Bem, deixe-me retomar a nossa entrevista, infelizmente, nosso espaço aqui não é ilimitado, infelizmente...

BS-K:  Mas isso não é tão grave assim, meu amor, a gente sempre encontrará o espaço que nos convém, tenho certeza. 

JP: (risos) Belmira... Bel, já nem sei mais, (risos) enfim, você poderia nos dar uma síntese de como se ensinava filosofia nas grandes escolas gregas?

BS-K:  Alguém já lhe disse que você fica uma graça quando ruboriza? não? então digo-o eu. Meu anjo lindo, é impossível me concentrar com este seu estonteante sorriso pairando assim, diante de mim! (risos) Mas, dona de mim que sou, eu respiro fundo e vou ao fundo da sua pergunta: ao contrário do que ocorre nas nossas universidades, nas escolas gregas não havia discursos, mas exercícios de aprendizado da sabedoria. Um exemplo: na escola estóica, no século IV A.C., Zenão de Cítio, o primeiro estóico, pedia a seus alunos que pegassem um peixe morto na feira e que o amarrassem a uma coleira para levá-lo para passear como se fosse um cachorro. Hoje, digamos, esse mesmo ritual macabro é executado por soldados americanos com guerrilheiros talibans. E, segundo o que sei, também em práticas sado-masoquistas, por exemplo. Pois bem, quando esses alunos passavam, quase todos olhavam e zombavam. O que pretendiam os alunos de Zenão? (que por sinal, era homossexual mas não assumido, vale aqui o lembrete) Pois bem, eles pretendiam que não deveria se temer o que os outros dissessem. O sábio não é apenas aquele que teoriza, mas aquele que vence o medo do olhar alheio, do que os outros pensam. O sábio não se importa com as convenções artificiais dessas “boas pessoas”, religiosas, os moralistas cristãos. Não, ele desvia o olhar para concentrar-se na natureza, no cosmos, na beleza diante dele e se deixa encantar por ela. Ou seja, a sábia vive em harmonia com a ordem natural das coisas, com ela própria, totalmente receptível aos apelos de um sorriso lindo, por exemplo, ávida para conhecer o sabor de um beijo nesta boca, deixando-se levar de mãos dadas a esse mundo de almofadas macias, como já citei antes, onde edredons convidativos as esperam... 

JP: Muito obrigada, Professora Doutora Belmira Simone Santos-Knupp.



* Belmira Simone Rhodes Santos-Knupp é doutora em Filosofia pelas Universidades da Paraíba, de Darmstadt e de Sussex, autora de vários livros sobre o feminismo e de um método progressivo de desinibição que ela denomina " fêmealidade sub-crescente", uma linha filosófica que busca explicar que as carências maiores existentes no universo feminino provém dos medos, e cuja libertação só se dará pela cooptação de afinidades em um mesmo gênero, corrente esta que se tornou uma espécie de tendência "fetiche"no universo homossexual feminino.