Em termos de expressão, mylord, qual a diferença entre o alemão, o francês e o brasileiro?

É que o alemão pensa antes de falar ✦ o francês pensa enquanto fala ✦ e o brasileiro fala sem pensar. (Lord Jaeggy)

sábado, 4 de abril de 2020

CARAMBA, JÚLIA PRODO ENTREVISTA !





Júlia Prodo entrevista o poeta experimental MALCOLM GREY*




JÚLIA PRODO: Caro Grey, é uma honra para mim poder inaugurar este espaço pioneiro da cultura poética brasileira que se tece através dessa curiosa e sintomática rede a que chamamos blogosfera, tendo você como a primeira pessoa entrevistada. Gostaria que nos dissesse até que ponto você é consciente das idéias no seu processo criativo, você poderia nos explicar um pouco desse fascinante processo de gestação interna de um poema, de uma obra?

MG: Posso sim, mas lhe adianto já que a criação não existe. Não existe criação assim como não existe obra. Você mesma, Júlia, você não existe, é a projeção de uma idéia, apenas. Por isso fica difícil falar do que me leva e do que me traz. O metrô, por exemplo, leva pessoas. Leva idéias, emoções, sentimentos… veicula um todo abstrato através de uma estrutura concreta. Mas se você inverte o processo e concretiza essa idéia, essas emoções e esses sentimentos, o metrô passa a ser uma figura abstrata. E como o abstrato só existe no mundo idealizado, o metrô vira idéia, já não é mais meio de transporte algum. É idéia. As pessoas vêem um cortejo de outras pessoas sendo levado pela noite sobre trilhos e ficam sem entender nada, porque não vêem o abstrato que as conduz. Para elas, o metrô não existe. No momento em que a idéia vira livro, ela passa a não mais existir como idéia, mas como livro. Daí o meu mais absoluto repúdio a toda e qualquer concretização daquilo que habita o meu imaginário. Se o fizer, a minha criação deixará de existir e passará a ser apenas uma projeção de códigos semióticos e gráficos. Não existindo criação, não existe obra. Elementar.

JP: E por que, no caso, eu não existiria?

MG: Porque é matemático. É uma proposição que se faz dentro da lógica matemática e, sendo reversível, ela se anula a si mesma. Se você é a entrevistadora, eu sou o entrevistado. A recíproca seria, se eu sou o entrevistado, então você é a entrevistadora. Suas perguntas se baseiam na minha obra. Se não existe obra, não há porque existir perguntas. E se não há perguntas, não há porque existir entrevistadora. Ora, não existindo entrevistadora, logo, você não existe. É uma projeção associada a uma condicional, no caso eu, e que, não tendo obra e nem me considerando um entrevistado para falar acerca da minha não-obra, logicamente que eu também não existo. A negação da negação é a afirmação. Mas a negação da negação da negação é a própria negação. 

JP: Entendi. Quais são algumas das influências que marcam a sua obra: você poderia nos falar sobre alguns espaços urbanos, ou rurais, uma mãe possessiva, talvez, o seu cotidiano, que objetos ou autores?

MG: Mãe possessiva... sim, eu tive várias mães possessivas, mas eu fazia abstração e todas elas desapareciam. Só muitos anos depois, andando sozinho por uma trilha na Chapada dos Veadeiros, eu ouvi um canto, vindo de uma cacimba ali por perto. Era uma de minha mães que cantarolava uma canção de Altemar Dutra. Isso me enterneceu. Me influenciou. Mas, como costumo dizer, influência é algo sempre muito relativo. Vá anotando. Em meados da década de 50 foram surgindo as primeiras influências de um Mancha Negra, de Hawita e Pão de Mel, do Sargento Preston da Polícia Montada, de Tarzan, do sabonete Gessy-Lever, de Monteiro Lobato, do Q-Suco, de Cely Campelo, da caneta Parker de duas cores, da Rural Willys, de Vinícius de Moraes, do leite Glória instantâneo, da cor amarela, de "Manduca no Tempo da Colheita", de Jorge Luís Borges e do creme dental Kolynos. Na década de 60, tudo mudou de repente. Anota: James Joyce, João Cabral de Melo Neto, Jerry Adriani, o creme para pentear Brylcreem, Helena Sangirardi, o Aero-Willys 62, a casa Hobbylândia, Ferreira Gullar, o Boeing 707, a cor verde-abacate, René Char, a canção "No Milk Today", os concretistas paulistas, Flávio Cavalcanti, o perfume Vitesse, Leila Diniz, a letra M, o Pedrinho Aguinaga, Marshall McLuhan, Taiguara, Terça-Feira Lobsang Rampa, o sabonete…

JP: Perdoe-me ter que interrompê-lo, caro Grey, mas pelo que você cita acredito que você aceitaria a tese de  Arnold Ludwigstein, dentro da teoria Gestalt, de que a percepção visual é um ato cognitivo. Qual a sua opinião sobre os conceitos estudados por Ludwigstein?

MG: Vou lhe dizer, Júlia: é a mesma daquela estátua do finado mestre Ataliba, lembra? aquela da propaganda de uma cerveja e que, no dia da sua inauguração, olhou para os convidados e disse: E vocês vieram aqui para beber ou para conversar? (risos) Ludwigstein é fácil demais e, por isso mesmo, fica muito difícil falar de Ludwigstein. Porque ele é uma influência total, assim, cósmica, o infinito ideal que eu posso conceber de uma coisa ilimitada. Mas, ao mesmo tempo, ele é uma coisa muito simples. Como o Niemeyer. O Jorge Mautner costumava me dizer: "Aprenda tudo com ele…" E eu aprendi, naturalmente. 

JP: Na sua anti-obra de 1987, "Desconstrução da forma inversa pelo oposto de seu contrário" você critica a radicalização de uma certa vanguarda em envolver conteúdos políticos no processo de todo processo de criação associado a um dado de realidade. Você ainda acredita nesse tipo de, digamos, marginalização das artes, da literatura, através do engajamento político?

MG: Acredito sim, mas não lembro mais qual era a minha posição naqueles anos lá. É a recorrência, entende, Júlia? o retorno das idéias, das mesmas emoções do cotidiano, as que não tem razão alguma de existir. A gente projeta conteúdos e se esquece. Projeta e esquece. Esquece e projeta. Tem uma canção do Gil que fala de algo assim, de ver o mundo como um grande mapa geográfico e sair colorindo ele com lápis de cor…. espera, isso me deixou meio estranho. Espera! pintou uma onda na minha cabeça agora…. espera. Vou criar alguma coisa…. (faz grandes gestos com as mãos)…. vou criar…. espera. (fica em silêncio por instantes) Não, é melhor não. Vou deixar pra lá, não deu. Estava quase saindo mas não deu. É que você falou nessa história de marginalização e isso me tocou. Eu acreditava, sim, acreditava em todos os óbvios pré-existentes. Mas hoje já não tenho mais certeza. A gente muda.

JP: É, muda sim. Grey, há muitos poemas seus que eu gostaria de comentar nesse nosso diálogo, mas por falta de espaço vou selecionar aqui apenas o poema visual "Minas Gerais, Brasil", para muitos um exemplo de virtuosismo literário, para outros um monumental equívoco. Para aqueles que não o conhecem, "Minas Gerais, Brasil" é um poema constituído apenas de uma reprodução do mapa de São Paulo(!) com um imenso par de óculos de grau desenhado a tinta preta em primeiro plano. Você poderia nos explicar as forças ou os agentes que motivaram a criação deste poema?

MG: Olha, este poema foi criado em 1969, numa época em que eu estava me preparando para fazer concurso para o Banco do Brasil em Salvador, Bahia. Uma noite, eu estava estudando com uma antiga namorada, que era mineira, e haviam vários mapas espalhados pelo chão da sala. Num dado momento, meio sem jeito para dizer a ela que eu já estava com uma outra, (risos) aí eu peguei um dos mapas e, achando que era o de Minas, eu lhe dei, assim, sem mais. O objetivo era de que ela entendesse a mensagem. Só que ela me olhou sem entender e me disse: "Mas o que é que eu faço com este mapa de São Paulo?" Foi então que eu me toquei que tinha lhe dado o mapa errado. Com raiva, pus o mapa na mesa, peguei um pincel atômico e fiz um imenso par de óculos de grau, bem "fundo de garrafa" que era para eu deixar de ser burro e ver melhor as coisas antes de dá-las a alguém. (risos) No entanto, ficou a idéia de que, para mim, era um mapa de Minas. Mesmo sendo o mapa de São Paulo. Anos depois, casado com essa mineira (como eu não tive coragem para lhe dizer que eu tinha outra, então eu terminei com a outra e me casei com ela) e já morando no Rio, ao rever esse mapa, eu tive então uma trip. Estava ali o poema. Ali estava um imenso poema, na verdade. A abstração de um Estado conduz a um outro através das lentes que nos levam a fazer essa abstração. Olhando São Paulo através daqueles óculos eu via Minas. E a recíproca também seria verdadeira, caso o mapa fosse o de Minas e, no caso, a namorada da época uma paulista. O espectador que se interroga diante deste meu poema visual, poderá até estranhar no início, mas será normal. Porém, se insistir, ele vai chegar à mesma trip que eu. E vai deduzir que vendo São Paulo, ele pode ver Minas, é só uma questão de predisposição interior para aceitar a abstração. E, para ele, não existirá mais São Paulo, apenas Minas. Porém, como Minas não existe de fato, pois o mapa é de São Paulo, aí tudo vai oscilar no relativo. A percepção de um Estado anulará a outra e Minas vai então deixar de existir. Sem mais Minas e nem São Paulo, ele não verá mais nada, nem um Estado nem o outro. Logo, o poema deixará de existir. Assim como a criação que, como eu disse antes, também não existe. Nem a obra. E nem você. E nem mesmo eu.

JP: Muito obrigada, Malcolm Grey.



* O poeta capixaba Malcolm Grey, nascido em 1950 e de seu verdadeiro nome Edmylson dos Santos Mendonça, é poeta dentro da linha vanguarda experimental, pós-moderno e pós-concretista, cuja proposta de "obra ausente" se insere na dialética validade intrínseca do artista vis-à-vis da perenidade de sua produção. Sua única obra – ou "anti-obra" como ele próprio a designa – publicada sob forma de encarte em um livro-coletânea de poetas universitários de 1987, teve todos os seus exemplares incinerados em ato público promovido pelo autor, à guisa de repúdio civil ao aumento das passagens dos ônibus urbanos da capital paulista, ocorrido naquela ocasião. Desde então sua criação se faz espontâneamente porém sem registro algum em nenhuma forma de suporte material.