Em termos de expressão, mylord, qual a diferença entre o alemão, o francês e o brasileiro?

É que o alemão pensa antes de falar ✦ o francês pensa enquanto fala ✦ e o brasileiro fala sem pensar. (Lord Jaeggy)

segunda-feira, 30 de março de 2020

O QUE NADA HÁ DE NOVO? a crítica literária de MIROBALDO CANUTO


MIROBALDO CANUTO, vosso crítico literário, 
analisa "O Ar Rôto das Madrugadas" de Magda Pirella
 (Edições da Arara Cristã, 97 páginas, R$ 60,00)



Sempre que meço a dimensão de um livro, a tendência é, obviamente, de olhá-lo pelo lado que não me faça admirar a obra. É preciso sufocar toda e qualquer veleidade de admirador, que não me deixaria ver as possíveis gafes do autor ou autora, e me arrastaria pelas ruas da crítica mal feita, levando uma carga de favoritismo de quem a redige, e que só atrairia apupos e onomatopéias de um leitor mais ou menos esclarecido. No entanto, tão logo caiu-me às mãos um exemplar do esbelto livrinho de Magda Pirella "O Ar Rôto das Madrugadas", eu já senti que se tratava de uma obra de peso. Isso porque o "Ar Rôto" é bem mais do que um mero livro : é obra. Para um poetisa temporã – a autora se lançou na aventura das letras já na casa dos cinqüenta – e que teve um árduo caminho de ano e meio para chegar até uma grande editora, algo infinitamente notável para um escritor iniciante, Magda Pirella, do alto de sua figura de matrona quatrocentã, impressiona. Sua poesia desconcerta. Comove. Indaga. Incomoda. Acontece. E como se não bastasse, seu livrinho-obra, ao ser publicado e distribuído em larga escala através dos vasos de venda mais mediáticos,  abriu ao grande público o conhecimento de uma nova proposta de poesia escrita aqui no Brasil, um mercado pequeno, amorfo e quase sem vida, mas que passa, aos poucos, a expandir morosamente os gases de sua digestão lenta e desinteressada às camadas sociais ditas emergentes.

A maquiavélica luta entre o Bem e o Mal, e que desde sempre nos foi contada e recontada à exaustão e nas mais variadas posições, desaparece por completo já desde os primeiros versos da poetisa barriga-verde. O que deixa o leitor perplexo, infeliz, quase aviltado. Porém, Magda insiste em retomar as possíveis interdependências entre o que é bom e o que é ruim. Por sinal, nela os conceitos e sintaxes pairam no ar como se fossem laranjas nas mãos de um saltimbanco de feira. A autora parece se divertir em contracenar consigo própria como neste inquietante "Monólogo de mim para mim mesma" onde as justaposições dos sentidos criam uma espécie de sala de espelhos poética diante dos olhos entorpecidos do leitor. "Você se conhece, Magda? não, eu não te conheço, Magda." Os bordos afiados da lógica pirellana, fria e implacável, ferem frontalmente a nossa sensibilidade cristã, mas nos fazem enxergar mais além das mangueiras do quintal do vizinho. Nesse magistral poema, a plurissemia abunda. "Abra-se mais, mulher, vai, relaxa... / assim sentirás menos o doloroso / daquilo que a tarde te empurra / aquilo que te abre em duas…"  Para finalizar com uma mensagem explicitamente codificada : "Agora cansei, periquita, / estou saindo pro cabeleireiro, / tchau!"

A poetisa tem uma tal intimidade com as palavras, escrevendo-as certas vezes de forma rebuscada, outras de forma incompreensível a todo neófito literário, que, por momentos, o apego se desvanece em busca de uma indagação. E esse é um dos pontos altos do livro. A sincronicidade aleatória dos eventos no tempo da narração é também um outro milestone neste livro tão singular. Em seu pananacromático poema "Vim-Fui-Vou-Virei", uma pequena obra-prima de transcendentalismo tropical, Magda brinca com os sentidos nas diagonais do tempo cronológico, alternando coerências com frivolidades, como se auto-parafraseando dentro de um carrossel lúdico, atemporal. "Meu ontem de amanhã será mamãe / e meu filho virá do meu passado / eu, que voltei do que fui sem ser o que sou, / vou cega, surda e muda daquilo que não fui." Pois é, assim como o vento sopra aonde quer soprar, a genialidade também apronta as dela – e aonde menos se espera. 

Poeta de seu tempo, revolucionária e provocadora, Magda Pirella não poderia deixar (elementary, my dear Watson) de incursionar pelo universo do sensual, das reminiscências de boudoir, do submundo onírico e quase incestuoso, seja saído de seu vivido, ou apenas de sua fantasia. Pouco importa, a sua poesia toma cada leitor pela mão, agitando-o, desnudando-o e levando-o a dar um mergulho em inconfessáveis emoções, como no arrepiante poema de título simétrico "Minha Mão Tão Minha" : "Somos inseparáveis, eu e minha mão / desde já o primeiro comichão / indicador mexendo no tinteiro / polegar fingindo contar dinheiro / vai a galope a imaginação /... "  De tirar o fôlego.

A intensidade poética que se distribue em trinta e três poemas, marcados a fogo olímpico em originalidade, e borrifados com a aragem seca do desprendimento, personifica os acasos e sedimenta o oportuno na obra de Magda Pirella. A leitura do seu já antológico "O Ar Rôto das Madrugadas" proporciona ao leitor uma vaga sensação de vazio, de travessia de um deserto literário ainda inédito, onde letrinhas de macarrão se entremeiam a sensações perfunctórias, magnetizadas por alusões que se entreolham e se desconhecem, e que nos levam a duvidar dos reais sentidos da existência. Proposição intencional ou cruzamento de casualidades? a indagação fica no ar, na linha sinuosa da boca desenhada a batom escarlate da autora, à guisa de um recado de Esfinge a todo passante que se lhe depara, como neste magnífico verso "… afinal, / todo seio reconhece a boca que o conhece." 

Trans-cen-den-tal.