Em termos de expressão, mylord, qual a diferença entre o alemão, o francês e o brasileiro?

É que o alemão pensa antes de falar ✦ o francês pensa enquanto fala ✦ e o brasileiro fala sem pensar. (Lord Jaeggy)

domingo, 31 de maio de 2020

VEM COMIGO! a grande reportagem do mês, "signé" NEY HERBERT-SUZUKI


VEM COMIGO!    a grande reportagem signé  NEY HERBERT-SUZUKI



O GRANDIOSO NATURISMO NATURAL MADE IN BAHIA


Nos dois quilômetros de praia branca a perder de vista, proibido mesmo é o uso de roupas. « O negócio é liberar geral », a frase que mais se ouve, saída dos lábios grossos de uma gente morena e sestrosa, tranqüila, e espantosamente nua. O paraíso dos nudistas (ou naturistas pós-tropicalistas, como o querem alguns) fica a pouco mais de cinco quilômetros da Linha Verde do Tratado de Tordesilhas, na localidade de Massarandupió, no próspero município de Entre Rios, em um dos recantos mais exóticos e, curiosamente, o menos famoso do grande litoral norte baiano. Ali toda nudez é permitida, mas (pormenor importantíssimo) sem permissividade alguma, uma norma aliás explícita em corolário e que é ponto de honra que a distingue como única praia naturista da Bahia carente, e a segunda em todo o Nordeste que Deus dá.

Nas duas estações do ano, Massarandupió atrai uma pequena multidão de banhistas bem apanhados e iracundas ogivas luzidias, uma parafernália de balagandãs bastante diferentes, porém, que exibe um claro denominador comum: todos são desinibidos. Quer pelo seu exotismo tipo-exportação, quer pelo fato de ser justamente um local onde as pessoas podem ficar completamente à vontade, ou seja, mais peladas que frango no espeto, a zona realmente promete. Isolada por extensos contrafortes mouriscos e pelas albarrãs de elevadas dunas, separada da histórica vila Dentro pelo terrível rio Saiduípe, sem acesso algum para veículos motorizados, sem eletricidade, sem médicos residentes e nenhuma forma de comércio carnal por perto, a praia do nudismo natural é inacessível para o assalariado comum, ou para o modesto arrimo de família e mesmo até para o pequeno produtor rural de origem japonesa. E é isso que garante a sua privacidade junto ao setor bancário, onde somente quem se submete a uma espécie de Código Oral de Relações Anuais (CORA) pode freqüentar a praia, sem o menor problema de ali encontar sua mulher com o vizinho, ou uma antiga professora de ginásio, ou mesmo ainda colegas do escritório que jamais suspeitaria ver em um tal lugar. O que ali se sacramenta, entra apertado nos anais da História e não há mais como sair.

Toda decência será castigada 

O idealizador e presidente da Associação Baiana de Naturismo Natural (ASBANANA), o já lendário padre Miguelzinho Vianna, disse que o local foi criado no nascer do dia 20 de fevereiro de 1988, mediante decreto da Capitania de Entre Rios, parafraseada mais tarde pelo excelso Comendador Bartolo Mendes de Nunes Castro. “No início, éramos apenas 7 casais praticantes de uma forma arcaica de swing católico, mas hoje já estamos com mais de mil sócios, sem contar as pessoas que se roçam nas filas e se beliscam, e que ficam enfezadas de despeito, querendo entrar, mas eu não deixo.” disse, referindo-se irônicamente às lutas intestinas entre o Parumfabá (Paraíso Umbandista da Família Baiana) e o Moitão-Pastoral, da Diocese petista. Na verdade, a entidade congrega hoje na Bahia muito mais de 967 sócios homologados (chamados pejorativamente de «sócios homem-alongados»), igualando-se às outras praias de nudismo avantajado no Brasil, tipo Tambaúba na Paraíba, e Pinho Velho em Santa Catarina. 

Dos dois quilômetros sob o sol de praias privativas, porém, sem nenhuma privada, apenas 800 metros bem compridos são reservados para a prática do naturismo. Os associados dividem-se em dois tipos: varapaus-sintomáticos e beiçolas-almofadadas, e recebem identificação imediata e discreta no momento da inscrição. Assim que chega ao local, o visitante é recebido por seguranças completamente despidos e, caso queira aderir ao nudismo natural, passa primeiro por um período de «adaptação» em um espaço separado do resto da praia. Ali, ele se encontrará totalmente nu ao lado de professores escolhidos dentre os mais bem-dotados representantes da raça etíope, e irá se acostumando aos poucos ao « roçar natural das peles e se liberando progressivamente da repressão dos alfaiates, das modistas, até ficar à vontade por inteiro, ou seja, aceitando tudo o que a natureza natural lhe empurrar, bem devagarinho, mas sem fazer carinha feia porque aí papai não gosta.” explica o bancário Manoelzinho de Moraes, do comitê de triagem, entre os risos e gargalhadas dos demais associados. Adultos, idosos e crianças estreitam-se assim num clima de confraternização cristã, onde a inibição inicial (flacidez dos visíveis) cede lugar à espontaneidade adquirida intuitivamente (ascenção diagnosticada). 

Rosetando a dorminhoca

Turistas de outros estados, como a belíssima jornalista gaúcha Elke Maria Renner, e o internacionalmente conhecido pediatra paraibano Dr. José Nilton Encosta, o « Metrão », 23 anos, misturam-se maliciosamente entre curvas gravitacionais de peles morenas, ou a estrangeiros de cano curto, como o editor da revista canadense “Virtually Naked Magazine”, o Prof. Bob Westmoreland, 64 anos, que visitava o local pela primeira vez. Bob pareceu bastante impressionado com as ogivas luzidias que ali viu. «Beautiful, very nice ! wonderful ! woooonderful !» entusiasmava-se o magnata, enquanto fazia fotos e anotava os telefones das beldades que se contorciam em variadas poses artísticas na areia, diante da sua grande angular. Dezenas de machos baianos, bem constituídos em seus arsenais retintos, preferiram contudo manter o anonimato, temendo serem reconhecidos pelas esposas ou pela família, quando a matéria fosse publicada. 

A guia turística Rosemeyre Lindembergue, 53 anos, por exemplo, explica que teve que enfrentar esse tipo de comportamento sexual fulgurante há quatro anos atrás, quando seu "guru" e presidente d’ASBANANA, o sisudo ex-padre Miguelzinho Vianna, criou a praia do nudismo natural. “As pessoas pensam que praia de nudismo é safardagem, que é vir aqui pra molestar o cajado do pastor ou bulir com a passarinha de Sinhá. Não é nada disso, meu irmão, aqui ninguém se preocupa com o corpo dos outros, a gente quer mais é curtir a Mãe-natureza e rosetar a dorminhoca. O que está mole está cansado, não é atração e nem nada.”, dogmatiza, enquanto faz pilhéria com o flácido visível de um associado, visivelmente constrangido com a presença do fotógrafo, esse também um associado de última hora e que optou pela omissão total de seus créditos fotográficos nesta reportagem.



domingo, 10 de maio de 2020

O QUE NADA HÁ DE NOVO? a crítica literária de MIROBALDO CANUTO


MIROBALDO CANUTO, vosso crítico literário, 
analisa "Aginopansei" de Odélia Felinto-Castro
 (Sinne & Kwanon Editores, 112 páginas, R$ 56,00)




     Outro dia, ao entrar em conhecida sanduicheria de Copacabana, levei um susto fenomenal. Sentada a uma mesa, falando e gesticulando com a graça de uma garça gris, quem eu vejo? sim, você acertou, ela mesma: Odélia Felinto-Castro, nossa poetisa-maior. Ao seu lado, um todo-poderoso, verdadeira potestade carismática, chapéu negro de abas largas e  bigodaço, que a observava e ouvia, enquanto tirava esporádicas fumaças azuis de um Partagas da melhor qualidade. Quiçá inibido, quiçá decidido a guardar meus votos de humildade pagã, ou quiçá ainda não desejando medir forças com aquele duo de plenipotência literária ali à minha frente, eu preferi então desistir do sanduíche (que o meu estômago reivindicava com todas suas palavras de ordem), e me fui, escapando incógnito por entre alguns fregueses, avançando aos poucos, porém, na certeza de não ter sido percebido pelo olhar inquiridor da poetisa. Mas não andei muito; na primeira livraria, entrei e pedi pelo Felinto-Castro mais recente, como se pede uma cerveja gelada de casco escuro a um garçom alemão. Já com o precioso exemplar dentro da minha belamente curtida bolsa baiana, curvei-me à ingrata sina que me obriga a enfrentar – e em condições das mais críticas – o retorno à casa de hora e meia em ônibus lotado, entouré da pior companhia possível. 

      Muitas horas depois, e refeito do choque, é que me pus a esquadrinhar, com fervor, as novas letras de uma poetisa que, se não fosse a minha calejada e imparcial posição de crítico, eu já teria lhe dado cadeira cativa no elenco dos mais inventivos poetas da nossa língua. De cara, o livro impressionou-me pelo curioso título cunhado pela autora: "Aginopansei". Remeteu-me às viagens semióticas de um Umberto Eco, onde a interação da linguagem inconsciente funde-se com uma certa preguiça na articulação da palavra para daí gerar o neologismo triunfal. O que traduziria o título em vernáculo próprio para Agi, No (ou non) Pensei – construção bilíngüe originalíssima – e que redundaria em português algo como Agi, mas não pensei, ou então, Agi sem pensar. Já na orelha do livro, o editor Bócio Francone alerta para a "invasão crescente de uma semiótica violenta e exterior aos domínios da semântica e do poema", o que corrobora a vocação da obra de ir além das tendências, afirmando-se, soberana, em seu universo próprio e impessoal.

     A linguagem vibrante e sofisticada de Odélia Felinto-Castro utiliza os próprios sinais gráficos e mecanismos da escrita inconsciente como matéria plástica de poesia. Parênteses, asteriscos, cortes, colchetes, superposições, rasuras, aliterações, e itálicos entremeados de forma caótica no texto criam ritmos, situações dramáticas de inconfessáveis intenções. A forma de pontuar (ou de não pontuar) produz efeitos que sublinham a busca de originalidade, essa procura incessante de uma maneira própria de ver e narrar o mundo, porém, de forma impessoal. No seu inquietante No me moleste, mosquitón, pessoas são assassinadas sem o saberem, rasgadas por baionetas, seja em Damasco ou em Saraievo, ou abatidas a tiros numa favela carioca. "Tu num tá veno naum meu não um?// iii vem bala!! § morou… nas bocas (des)ova, é pau só ||| uiiii e dueu,,, %!! ara= achei e chega de cheirar cola – UI, doi dimaissss, pingUIm…." Mas, precavenha-se o leitor, estes não são versos com sentido jornalístico ou de denúncia. Odélia é uma poeta no mundo da rua, em estado de alerta e transformação a cada berro que escute, antenada tanto no que está fora como no que ocorre dentro dela mesma. Deste frágil equilíbrio, do choque dramático entre o sonho, o pensamento sem amarras e a violência da realidade, nasce o lirismo dilacerante do livro, traduzido no verso: "ooorra meu!! iondi fico eu nua nu mundo tãossó §^???." 

      Chamou-me muito a atenção, por outro lado, o erotismo refinado de alguns poemas: trata-se de uma mulher, de uma fêmea bípede e astigmática, uma bela mulher de óculos de grau, diante do mistério do macho sonso e da incertitude do amoroso. É um erotismo indireto, sutil como a vida de um lenhador, e instigante como observar o sexo de uma vizinha através de um binóculo; um sensual cantado de forma inspirada, capaz de transportar quem lê, a outros planos e dimensões, já que esta é, entre outras, a função da poesia e, cá entre nós, uma poetisa do porte e do glamour de uma Odélia Felinto-Castro não o faria por menos. Soma-se ao introvertido poema Trem ninguém naum e seus antológicos versos responsoriais: "tema = não trema / metro a mão = não meta / trem gente = tem gente naum / mi (des)peço A10 = peça NAUM !$*+!"// o exuberante e musical, quase um ícone mesmo da avassaladora poética da autora: "Mi'a bandeira cor de jade, já desci, sì, sì, é a Gal, a colher de pau, mulher de cal, a CAL sim, nhá !---? SiM, a cal, sinhá!?!" 

           Es-ton-te-an-te.

     O livro é muito bem editado, com blocos claramente marcados, entrelaçados pela unidade expressiva do texto poético e seus encontros. Um desses encontros mais interessantes é o No agora do angorá, reunindo poemetos bastante incomuns, inspirados em visões interligadas às artes plásticas. Em vez de descrever mecanicamente o que vê na tela de seu computador, Odélia Felinto-Castro passeia, ri, fuma marijuana, viaja livremente por aquilo que as imagens lhe sugerem, e as esboça com gestos e versos, ora pudicos, ora visivelmente obscenos. Em Perdi o meu c'oum KAra, um bloco de poemas dedicados a pessoas com quem a autora relacionou-se sexualmente de maneira informal, encontramos uma preciosidade de voyeurisme, dedicada a seus avós maternos, na cama que "ardente soluça-ça geme (ça j'aime) foi gemer na reta / arre a retaguarda dela e atarracha no arracha / a tora na tara em posição crucial". É a própria essência da Poesia de vanguarda desnudando-se no palco das verdades mais assumidas.

      
       No fim, naquilo que Odélia chama de "coincidências emprestadas", ficamos sabendo de onde vieram frases ou trechos de textos apropriados pela autora. Ela assume que usa trechos alheios, recriando-os, fundindo-os com seus próprios em soluções algumas vezes surpreendentes, como retirando no título do conhecido soneto "E aí, poeta, dialeta?" do saudoso Daniel Monge, o seu mote Não dialeta de medo, poeta?. Já no Mulher de banho tomado, é flagrante a "coincidência" que fez aos versos do poeta amazonense André Beça no seu pouco expressivo Um poema passou pela rua, de 1997, onde, além de ter "emprestado" um verso inteiro do poeta como integralidade do título, Odélia utiliza o verso original de Beça "àquela sua boca que ninguém sabe", transmutando-o de forma genial no "àquela sua bunda que ninguém sobe". Flagrante delito poético, porém, transcendantal.

No entanto, em outros casos, como em "Você sim, Rabeau", a poesia torna-se quase circunstancial. E também em alguns momentos de prosa poética (ou crônicas poéticas, como ela própria chama) não sentimos a mesma força desta fêmea capixaba e poetisa, e que é, segundo ela mesma, uma Gata ascendente Leoa faminta! (sic). Pois então, se dentro da lei da jungle literária imperar uma conhecida máxima, saberemos que se o leitor corre, o livro pega; e se ficar, a leoa...