Em termos de expressão, mylord, qual a diferença entre o alemão, o francês e o brasileiro?

É que o alemão pensa antes de falar ✦ o francês pensa enquanto fala ✦ e o brasileiro fala sem pensar. (Lord Jaeggy)

sábado, 29 de fevereiro de 2020


A CRÔNICA POÉTICA DE EVA MARIA LUPINO







UM LIVRO QUE MEXEU COMIGO

Outro dia, morrendo de frio depois de ter andado horas no centro da cidade sem saber onde deixei o meu carro, eu resolvi então entrar na primeira loja que aparecesse para me aquecer um pouco, antes de voltar à minha ingrata busca. Felizmente que a porta dava para um sebo de livros, o que me fez esboçar um discreto sorriso na minha expressão de enfado. Dei-me ares de cliente, e logo passeei o meu olhar pelos títulos que se exibiam em prateleiras algo vetustas e empoeiradas. Após dez minutos de capas e orelhas desinteressantes, eu já me preparava para voltar a ser picolé, quando meu olhar se espetou num título: A Nudez dos Meus Dias. E depois alfinetou-se em um nome: Cassandra Matarazzo.

Meu coração, assim de chôfre, não acreditou, mas mesmo assim eu percorri algumas páginas e não tive dúvidas: era mesmo o livro que eu tanto quisera ler na minha adolescência, mas que me fôra sempre vetado. Censura de pais e do país. Depois, esse livro sumiu de todas as prateleiras, de todas as bibliotecas e das estantes de todos meus amigos. Eu já estava até resignada a não lê-lo mais, quando me deparo com este, providencialmente, numa tarde fria e num sebo dos menos apetitosos. Paguei o livro e retomei o caminho da rua gelada. Subindo de volta uma ladeira por onde já tinha passado, lembrei-me que meu carro, na verdade, estava na oficina naqueles dias, que eu saíra a pé de casa. Suspirei e calei palavrões terríveis que ameaçavam jorrar da minha boca. Chamei o primeiro táxi que vi, e afundei no assento, amuada, até chegar em casa. Paradoxalmente infeliz pois, afinal, acabara de comprar o livro que busquei desde a primavera dos meus dia. Na sala, já muito bem instalada no meu sofá azul, deixei-me levar pelos aromas de um maravilhoso chá indiano de canela e folhas medicinais e, preparando-me já para os primeiros espirros, entreguei-me finalmente às letras de Cassandra Matarazzo.

O livro dessa ex-professora do interior que se tornou escritora maldita, é, na realidade, uma autobiografia sem meias-palavras, um relato de sua experiência no alto baixo-mundo das cortesãs da elite social de homens políticos, industriais, publicitários e gente de rádio e televisão do início dos anos 60. Roupa suja lavada na praça, pau puro. Aliás, Cassandra recebeu inúmeras ameaças de morte, foi perseguida e coisa e tal, mas jamais processada. A razão? eminentes juízes, jornalistas e generais deste belo mundo tinham já conhecido os seus favores e temiam que houvessem cópias, mesmo fotos, que pudessem comprometê-los. Viver entre navalhas cruzadas a sabres – de arrepiar. 

Quando comecei o primeiro capítulo, onde, através de um soneto, ela fala de uma amante, coisa que deve ter chocado o discreto charme da moral burguesa dos leitores no final dos anos 60, meu interesse cravou suas unhas esmaltadas neste primeiro quarteto:

Eu te conheço, Eva, inteirinha!
Sei das provas "coladas" na escola..
Do teu priminho que não te dava bola...
Dos teus esconde-escondes com a vizinha...

No início fiquei em dúvida e pensei: será que é mesmo comigo? Não, eu não sou a única Eva do mundo. Nem fui a primeira, e nem serei a última. Logo... Mas, essa aí de priminho que não me dava bola? estranho. Teria sido o João Alfredo?…. ou o Ronan, que já faleceu? estranho. A história é que, sem que eu saiba porque, a palavra "inteirinha" aparecia sublinhada a tinta vermelha. Não sei também porque ao lado da palavra "priminho", havia uma estrela com um ponto de interrogação. E nem porque da palavra "vizinha" saía uma flecha para as iniciais L. B. no rodapé da página. Leila Belmonte…. seria?… ou então Luísa Bellotti Barroso? mas aí seria um L. B. B. Cheia de dúvidas, continuei lendo aquele intrigante soneto apócrifo.

Lembra daquela velha camisola
De hippie que tu usavas sem calcinha?
Lembro até do que tinhas na sacola,
As coisas que fumavas com a Verinha…

Sim, eu usava uma camisola de batik na época em que era hippie, sim, mas essa história aí de sem calcinha.... não sei.... Como posso lembrar, faz tanto tempo. E Verinha… mas que Verinha?… a Verinha Pettinati, aquela antipática? não, espera um pouco… tinha uma outra Verinha também, a que fazia Arquitetura. A gente almoçava junto, às vezes, e saía também de vez em quando…. mas, ela fumava? não lembro mais. Ah, e havia também a Vera Cruz Filisberto, a Verinha Fumacê, que foi miss universitária, galinácea como ela só, dormia cada noite em uma casa diferente… será que é ela? Deus do céu, como posso saber?… gozado, o que quer dizer essas aspas que puseram na palavra "coisas"? e esse número aí, 67.32.35 ao lado do "calcinha"… parece mais telefone dos anos setenta… Deus do céu, será que eu andei dando o meu telefone a algum poeta anônimo que não devia, naqueles anos lá?…

Essa imagem de ti que ainda trago
Na brisa da saudade, dói e balança,
Misturam-se a um sentimento vago

Da casa dos teus pais, na antiga rua...


Ah, eu achei tão bonito esse quarteto... será que o autor, ou autora, é gente que me conhece? até parece... Deus do céu, quanta coincidência! ou, quem sabe, alguém que me admirou em silêncio, à distância, durante anos, e que um dia se tornou poeta, talvez até um célebre poeta, com sonetos que fazem parte da antologia poética de uma grande editora!.... estou me sentindo até um ser humano muito privilegiado agora. A platônica Musa de um tímido vate, quiçá, de um grande nome das letras nacionais... nossa, jamais me imaginaria em um papel desses, juro.

Mas, de ti guardei a melhor lembrança:
Aquela foto em que estás toda nua.

Aqui me deu aquele arrepio. Foto minha? onde eu apareço nua? ai, ai… no momento, fiquei todinha arrepiada. Deus do céu! Pior ainda: ao lado do último verso, escrito na mesma e irritante tinta vermelha, havia o endereço de uma página internet. http://www… 

Vocês acreditam que, até hoje, eu ainda não tive coragem de passar lá?

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