Em termos de expressão, mylord, qual a diferença entre o alemão, o francês e o brasileiro?

É que o alemão pensa antes de falar ✦ o francês pensa enquanto fala ✦ e o brasileiro fala sem pensar. (Lord Jaeggy)

terça-feira, 2 de junho de 2020

JOGANDO CONFETE: a coluna literária de JOTABÊ MENDONÇA

"Avenida, Avestruz, Avemaria: Ave!" poemas de Ratto Guedes, Edições Alfabeto em Pó, 211 páginas, R$ 35,00






Li o livro e não gostei; fui ver um filme. Assim, eu poderia resumir o meu primeiro contato com o segundo livro de poemas do poeta amarilano Ratto Guedes, Avenida, Avestruz, Avemaria: Ave! que acaba de ser lançado pela Alfabeto em Pó. No entanto, uma sala escura de projeções pode nos reservar surpresas dignas da imaginação de um sacerdote de província. E, de volta ao aconchego do meu gabinete de leituras – um eufemismo para designar a peça doméstica e sanitária mais conhecida de todos nós – exerci-me, mais uma vez, à inóspita tarefa de repisar os dolorosos cardos do caminho da crítica literária. E, colpo di scena, eis que os versos de Ratto Guedes, qual salamandras desinibidas, denunciaram meus temores, minhas reticências, meus ontológicos preconceitos, e, repuxando a infensa ambigüidade que se espreguiçava pelos meus olhos, lançaram então a minha visão a páramos nunca dantes navegados. Um livro-epifania, verdadeiramente.

Já com "Zanúbia, Zuruã, Zigônia" de 1971, Ratto Guedes reunia em sua obra poética de até então a matéria-prima literária que, com os anos e publicações esporádicas em coletâneas e jornais estudantis, confirmaria e condensaria as grandes linhas de sua singular retórica. Desconstruir um mundo em desconstrução a partir da idéia de poetizar o anacrônico, o caótico, o incoerente, onde o caos não ocupa mais a paisagem, porém torna-se parte do universo do leitor é mais que uma proposta, é desafio. O Ex-Quartejador é o poema onde melhor se evidencia esse desmembramento. Nele, a percepção do leitor, até então nuclear, se faz prismática, aleatória. E bem o declara a estrofe: "Do pó da voz da laringe seccionada / meu dedão do pé desfia os seus milímetros /  jaz, diante do altar, meu amor sem orelhas / a suada fera que me alimenta é você". O olhar já não vê mais o de fora, ele intui o que poderia ver de si mesmo. A força das imagens em Ratto Guedes se traduz outrossim na musicalidade incontida das palavras, na força destrutiva dos conceitos, na recorrência de suas linhas-mestras de eleição, a paixão e o dúbio da paixão. 

Um exemplo incontestável disso é a sensação de vácuo e de extravio que se reforça a cada leitura de Retrato da dor quando jovem: "A perna me dói e eu me calo / a perna me dói e eu me seco / a perna me dói e eu me abalo / a perna me dói e eu me esqueço /..." A repetição obstinada do agente da sensação física na camada cognitiva de cada leitura, estabelece um hiato entre a origem conceitual da dor e o auto-exercício da razão com teor literário. Uma ambivalência forçada pelo poeta e que se cristaliza na declaração final, quase uma súplica: "sê tu a anestesia, / vem, amor, e me abraça".   

No furtivo poema Muro o Mito que Mata, de franca inspiração japonesa, as sonoridades parecem se nutrir delas mesmas, da tecelagem plurissêmica de indagações, do descentramento do pathos que se arraiga ao passional através do eixo razão-emoção. Parte-se mesmo deste: "No lábio roxo da tua cona / coxo, um astrolábio que ressona /..." Muitos outros autores poderiam aqui se inspirar, e desenvolver um paradigma. Porque a poesia de Ratto Guedes emerge da própria exterioridade, do imediato que nos leva a confundir uma tendência compensatória em minimizar os conteúdos diretos de cada emoção, e, como tal, ela busca a espontaneidade no seu próprio antagonismo. E exemplifica no dístico imortal: "Medro às vascas do meu desejo / e beijo a pedra que me lasca".

Ainda não é tempo para que se saiba se a poesia de Ratto Guedes lhe é idiossincrática ou não. Todavia, em qualquer das possibilidades, estaremos assistindo ao crespúsculo de um certo imaginário que vigora até então nas letras brasileiras: aquele que, surgido da dopagem das rimas, engendra o arquétipo do alvo cujo centro tonal já se encontra previamente estabelecido. A poesia de Guedes está em tudo. E em lugar nenhum. 


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